"Prometheus"decepcionou muitos fãs daquele universo "Alien" imortalizado no cinema pelo talento de Ridley Scott para a ficção científica espacial. Bobagem. Só decepcionou aqueles que esperavam mais do entretenimento fácil, repleto de explicações demais, com ação de videogame, que é o feijão-com-arroz da Hollywood de hoje. Ninguém quase esperou um filme denso, filosófico, cheio de referências externas, de premissas misteriosas tão cheias de imaginação.
O 'prequel' de "Alien, o Oitavo Passageiro" é uma virada no universo Alien, muito mais místico e aberto a possibilidades; menos niilista, sem deixar de continuar insólito, cético, escatológico, irônico e sádico, com palavras e imagens aterrorizantes.
Em 2093, a nave "Prometheus" vai a um planeta distante na esperança de contatar uma inteligência extraterrestre que possa explicar a origem da vida na Terra, trazendo a bordo uma tripulação de cientistas patrocinados por um magnata moribundo (Weyland). Acompanham a missão dos navegadores a filha de Weyland (Vickers, interpretada pela magnética Charlize Theron) e David, um andróide que o magnata trata como seu filho predileto.
O filme começa com belas imagens da Terra primordial. Um ET extremamente VIRIL se sacrifica às margens de um rio e desencadeia uma versão poética para a teoria da panspermia: a teoria de que a vida na Terra veio do espaço. Seu corpo se desfaz, e seu DNA é incorporado ao meio ambiente, dando início a criação da Vida. Se o Engenheiro - como são chamado esses seres ao longo da trama - fizeram isso "por amor", não sabemos. Talvez tenha sido apenas colonização, investimento obscuro de uma civilização obscura. Ou como é dito logo mais no filme: "porque eles podiam".
Adiante.
Adiante.
COMEÇA O SPOILER: ASSISTA AO FILME PARA MELHOR USUFRUTO DA RESENHA.
1 - David, o menino que quer ser gente
Dois anos separam a Terra desse mundo distante nas estrelas. A tripulação em animação suspensa é assistida neste intervalo pelo robô-andróide David (Michael Fassbender, um dos maiores atores de sua geração). Enquanto acessa as memórias e sonhos de toda a tripulação através das esquifes que monitoram a saúde e o sono dos tripulantes, David ouve música clássica, acessa a internet e parece assistir a TODOS os filmes da cinematografia existente. Numa das cenas, imita os gestos de Lawrence da Arábia com perfeição. Claro, que logo ele se torna o mais humano de todos na nave. E também o mais perigoso. Uma mistura de Hal-9000 com Pinóquio, e ares de charme perturbador.
2 - A tripulação
Compõe a tripulação um time de cientistas, geólogos, médicos e arqueólogos, como o casal Elizabeth Shaw e Charlie Holloway- os descobridores do planeta distante que logo chamaram a atenção do magnata Weyland para o planejamento e execução de uma viagem rumo ao encontro dos "Engenheiros" da ração humana.
Vickers é a Diretora da Missão, estando ali para garantir o investimento de Weyland.
E ao contrário do Alien de 1979, apenas três operários e alguns mercenários. Um empreendimento entretanto mais científico, bem diferente da "Nostromo" da tenente Ripley, cuja função era de ser um cargueiro de minério espacial.
Na reunião, após a hibernação traumática de dois anos, eles são informados de que o motivo de estarem ali é para provar a existência da origem da vida na Terra e encontrar o "Criador". Mesmo patrocinados pela Weyland Corporation, todos dão risada daquela suposta loucura patrocinada com milhões. Exceto David, que já formula no seu íntimo sua agenda pessoal secreta.
3 - Os Engenheiros
Logo a lua do gigante gasoso LV 223 é explorada, e acham uma estrutura construída por algo inteligente. Deslumbrados pelo novo mundo, fazem uma descoberta empolgante atrás da outra, desvendando uma espécie de depósito ou base. Os ETS Engenheiros então são vistos em uma reprodução holográfica dos seus últimos momentos naquele lugar: foram exterminados por uma força desconhecida, algum acidente biológico. David explora o lugar com mais intimidade que o resto da tripulação, levando amostras, desvendando hieróglifos, abrindo portas. Com menos medo também por ser um andróide sem alma. Ali aconteceu um holocausto. Uma cabeça de Engenheiro é levada e é feita a descoberta tão esperada nos laboratórios da "Prometheus: somos descendentes dos tais Engenheiros. Enquanto isso, dois cientistas imbecis se perdem na pirâmide e sofrem terrivelmente os horrores daquelas criaturas insólitas que lembram serpentes, aranhas, órgãos sexuais devoradores de gente e vermes pré-históricos.
4 - A experiência de David - que despreza a Humanidade - e os padecimentos do casal Shaw
O casal representa dois tipos de cientistas: Charlie é a mente fechada ao Transcendente, com respostas fáceis, tipo "a vida é banal no Universo"; Elizabeth (a deslumbrante Noomi Rapace, ô menina linda!), rebate: "Mas eu não dou a Vida". Shaw sofre por não engravidar. Charlie se conforma com ter descoberto os Criadores da raça humana; mas ela rebate: "Mas quem os criou?"
David - que não dorme nunca - conhece a natureza humana dos tripulantes o suficiente para prever reações e movimentos. Então infectou antes Charlie Holloway com a substância dos cilindros da estrutura Alien, com o casal fazendo sexo após a cena nupcial filosófica. A cena anterior é cheia de significados elucidativos.
O andróide embebeda Charlie usando o copo para contaminá-lo com a substância negra. Simulando intimidade e descontração, protagoniza o diálogo que define os planos de David:
- "Por que vocês nos criaram?"
- "Porque nós podíamos."
- "Você pode imaginar o quanto seria decepcionante se você escutasse essa mesma resposta do seu Criador?"
Eis a agenda secreta de David: substituir os humanos e até mesmo o seu criador. Essa agenda secreta o leva até a Câmara do Engenheiro, onde descobre dominar a tecnologia deles com facilidade. O menino feito de pau agora acredita ser Deus ele próprio.
"Grandes coisas tem pequenos começos".
5 - A virada da Missão
Sucessão das tragédias. Charlie adoece. Vickers o mata alegando protocolo de descontaminação. Shaw vai pra enfermaria onde David já a espera para dar a ela a Boa Nova: "Você está grávida!". Shaw não confia no andróide e exige retirar o alien do seu ventre, não sem que antes David retire a Cruz do seu peito e revele o quanto sabe sobre ela e sua relação com o pai católico que morreu "abandonado por Deus". David é mau e sádico. Um Pinóquio sinistro. Uma tecnologia a serviço de uma força de aniquilação maligna como Hal-9000. Sob um manto de charme. "Para criar, às vezes, algo deve ser primeiro destruído". Shaw foge. Se vira nos 30 retirando a criatura bizarra do ventre por conta própria, trancando a coisa no módulo de Vickers. Cambaleante descobre a verdade da missão: o magnata Weyland estava o tempo todo ali, em criogenia, caindo aos pedaços, sequioso do encontro com os Engenheiros, se preparando para o seu próprio milagre de ser salvo da morte. Weyland é o Prometheus que quer roubar o fogo dos deuses, alcançando a imortalidade, arrogante, não aceitando nada mais nem menos do que ser um deus ele também.
Shaw descobre que não é a única a buscar um sentido para a existência humana ali naquela nave. Descobre que também está ali para roubar o fogo dos deuses.
- "Onde está a sua Fé?"
Descobrimos no final dessa virada a verdade: Vickers é filha de Weyland. Ele busca o Pai, mas nunca amou a Filha. E fez dela uma criatura ainda mais desumana que David, o andróide. Pobre humanidade.
6 - Hora da verdade (ou não?)
Um cientista volta como monstro-alien e faz o diabo na nave. "A razão produzindo monstros". Cai a ficha de que todo aquele lugar é uma nave que serve de base para os Engenheiros que perderam o controle de suas armas biológicas para uma destruição da vida espalhada pelo Universo por eles próprios. Isso deixa Shaw chocada. Janek, o comandante-piloto da Missão partilha de sua preocupação com o destino da Terra com a chegada dessa arma biológica (que são os aliens da série "Oitavo Passageiro").
Shaw compõe o séquito de Weyland que vai conversar com o Engenheiro remanescente escondido por David. David jura dominar a situação. Shaw interroga o Engenheiro exigindo respostas para a destruição da Criação. David é decapitado, como um boneco. Weyland e seu séquito são todos mortos. Em cena poética, o Criador e seu Filho agonizam um lado do outro contemplando a falta de sentido, a crueldade de um deus ofendido sem um pingo de amor. Shaw escapa a tempo de implorar a Janek para que não deixe a nave alienígena partir, pois iria para a Terra. É atendida pelos nobres peões da Missão. Tal sacrifício jamais seria feito por nenhum dos outros tripulantes, todos cientistas egoístas e imediatistas, inseguros e medrosos. Vickers, que não é diferente, indiferente à Humanidade tanto quanto David, se não ainda mais, corre da nave dos súbitos mártires, em vão, perecendo sob o peso da desconhecida e insólita nave que lembra um monstro abissal lovercraftiano, destruído pelo sacrificio humano.
7 - A doutora Shaw, a mística de Damon Lindelof que enfrenta o universo niilista de Ridley Scott
David está humilde agora. Ou simplesmente deseja continuar a sua agenda. Sua jornada para dentro do ventre da baleia foi em vão. Decide ajudar Shaw que está em crise espiritual, sem forças para levantar. David dá a solução: pode dominar a tecnologia das outras naves. Shaw reage e vai até o módulo de Vickers para se salvar da morte sem oxigênio. Lá encontra o seu "filho" e é seguida pelo Engenheiro, avisada por David na última hora. O Engenheiro é consumido pela criatura insólita. A criatura devora o seu Criador.
Shaw negocia ajudar David em troca da Cruz do seu Pai. David se alia a ela na busca para compreender o porquê da decisão dos Engenheiros em destruir a Criação em todo o Universo. Mulher e serpente de língua bifurcada juntos novamente em busca da Árvore do Conhecimento.
Nasce o Mal, uma criatura que gerará a destruição encarnada, um demônio da escuridão do espaço. Mas também nasce o bem da busca pelo Sentido em uma mulher e em um andróide.
8 - "Prometheus" inverte o Universo Alien
Nessa nova "timeline" (que também é prequel e spin-off), Ridley inverte duas premissas básicas desse universo:
- a saga dessa vez vem da Terra para o Desconhecido; ao contrário da saga da Tenente Ripley, que vem do Desconhecido à Terra;
- a criação agora revela-se masculina - portanto, judaico-cristã - expressa claramente na virilidade dos ET's gigantes, na relação de Shaw com o pai, com o Pai da sua religião (narração dizendo "ano 2093 - ano de Nosso Senhor"), e na relação de Vicker e David com seu pai Weyland.CONCLUSÃO
Ridley, no Universo Alien, ridiculariza o otimismo da corrida espacial. Diz, em 1979, para a humanidade deslumbrada que lá na escuridão do espaço pode ter apenas morte e destruição, não civilizações coloridas e nem batalhas de Jedis e doutores Spocks amiguinhos dos homens. Agora ele o humilha dizendo que pode perder a cabeça como David e quebrar a cara na presença dos deuses como Weyland. Mas não está tão niilista assim. Elege a doutora Shaw como a síntese da verdadeira Ciência que pode nos trazer verdadeiro sentido e respostas, que foi responsável pelos avanços verdadeiros do conhecimento humano de todas as épocas, a despeito da arrogância da ilusão moderna e "iluminada": uma síntese de Fé e de Razão.
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