Mostrando postagens com marcador Nelson Rodrigues. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Nelson Rodrigues. Mostrar todas as postagens

11 de agosto de 2012

Do porquê que o Teatro me fez crer em Deus



Esta imagem das Olímpiadas que vi pela internet deixou-me especialmente emocionado. Postei no Facebook essa imagem com o comentário de que "Todo sonho alcançado vem do triunfo da Inocência". Logo recordei uma história pessoal.

Tenho que assumir que compartilho com o grande Nelson Rodrigues a opinião que ele tinha de si:

"Aos 18 anos eu era de uma ignorância enciclopédica"

Não que ela tenha diminuído, é claro, mas a minha superava a Barsa e a Enciclopédia Britânica juntas. Nelson já escrevia em jornais. O máximo que fiz quando adolescente foi escrever poemas mimados e servir de cobaia para experimentos de engenharia comportamental da MTV.

Foi exatamente aos 18 anos que comecei a fazer teatro. Comecei como um hobby, uma ocupação passageira para uma folga da universidade de Psicologia. E talvez pela oportunidade de ter tido bons mestres (além de ter um ego do tamanho do mundo), logo me deparei com duas dificuldades perturbadoras: nunca havia lido nada de importante na vida e tinha uma secura de imaginação. Meu ego juvenil - intoxicado de 'poder jovem' -, é claro, não suportava essa limitação. Eu estava pronto. Eu era "da geração que iria mudar o mundo". Desnecessário dizer que não acreditava em nada que não fosse eu mesmo; Deus então, nem passava pela minha cabeça. Eu era o adulto primordial, a besta metafísica que tinha no umbigo a consumação dos séculos.

O que acontecia era que simplesmente eu não tinha sobre o que falar em cena. Meu universo era tão somente a TV, as conversas entre amigos sobre a TV e, no máximo, livros que comentavam sobre algo que passava... na TV. Como eu não sabia ler nada que ultrapassasse uma Super Interessante, o simples contato com uma personagem de Nelson Rodrigues, ou uma estrofe de Shakespeare ou um verso misterioso de Eurípedes revelava-se uma tarefa humilhante.

Claro que tive alguma sorte. Meus professores de teatro (os grandes Ronald Bergman e Paulo Santana) jamais me estimularam a fazer o que chamam hoje de 'dramaturgia pessoal' (que, na minha opinião, não passa de uma muleta para atores semianalfabetos incapazes de entender uma ordem inversa, e que, assim usam um termo quase-acadêmico para disfarçar sua total incapacidade de se alçar ao 'sentimento do mundo') Não. Meus professores queriam que eu compartilhasse da mesma essência teatral a qual eles tiveram acesso e que arrisco a dizer que era e ainda é a mesma transmitida ininterruptamente, via mestre e discípulo, através destes 2500 anos: a verdade teatral que surge da brincadeira e da infância.

E essa postura essencial não era a que eu trazia para os meus ensaios. Eu queria - como na tal 'dramaturgia pessoal' - falar do "MEU mundo". Achava que todas as técnicas de palco serviam apenas para o mundo tivesse finalmente a oportunidade de conhecer Luiz Fernando Vaz.

Meu primeiro contato com a essência do teatro se deu ainda no meu primeiro espetáculo. E quis a bondade divina que fosse um Auto de Natal. Na peça, eu interpretava um pastor daqueles que estão entre os primeiros a ser visitados pela Estrela. Nas coxias, aguardando para entrar em cena, aconteceu o milagre que prendeu-me ao teatro. Fiquei tão mesmerizado quando ligaram os refletores que estanquei como uma mula.

Ali, enquanto era empurrado para o palco pelos outros atores, percebi instantaneamente toda a dimensão da minha ignorância naquele theatro mundi e neste palco outro em que vivemos: JAMAIS tinha visto uma peça em toda a minha vida. Jamais havia contemplado NADA na minha vida que não fosse eu próprio. A primeira vez que estava 'vendo' uma peça eu ESTAVA nela e - porca miséria! - estava ali esperando que o mundo contemplasse a mim. Errando a música e a coreografia, voltei a perceber aquilo que a criança percebe automaticamente quando chega a este mundo: que é necessário estender-lhe os braços não como quem oferece, mas como quem pede. Diante do público que me cravava os olhos, percebi que é preciso receber algo para ter o que oferecer. Mais tarde encontraria em Stanislavski essa certeza que para se doar é preciso primeiro se possuir. Finalmente, no final da peça, a atriz que representava a Virgem Maria levantou o Menino Jesus para que todos O adorassem. Então tive a certeza absoluta do que havia perdido: a Inocência.

Repentinamente, eu não era ninguém mais neste mundo e nem naquele outro que se abria por trás das cortinas. Como um bebê, estava totalmente desnudo e vulnerável. Mais uma vez. Foi então que percebi que jamais seria um ator se não me permitisse a brincar e ser como o pequenino que arregala os olhos perante às maravilhas do mundo.

Mas não; já tinha amarrado uma pedra de moinho no pescoço e me afogado nas profundezas do mar. Já tinha feito tropeçar o pequenino que eu era e agora ele jazia sob o peso do mar, sob o peso inteiro do mundo, incapaz de voltar à superfície - esquecido, abortado, morto.

O deus do teatro não é Dioniso, é o Menino Jesus. Dioniso podia ser como uma criança ao embriagar-se, mas o Menino Deus é a própria Inocência encarnada. A minha gratidão para com o Teatro não é somente para com quem me deu um ofício, um meio de sobreviver, mas principalmente para com quem - não me envergonho de dizer - me deu a Vida.

Quem sabe seja eterna...

Salve Maria Santíssima! Viva o Menino Jesus! Viva a Inocência Invencível!

24 de maio de 2012

Toda Nudez de sinceridade ainda será Castigada



"De repente, os idiotas descobriram que são em maior número." 

Foi com uma das infindáveis tiradas geniais de Nelson Rodrigues que iniciei minha pergunta naquela noite de terça feira, 22 de maio, para o professor Roberto Fadel. Tentei resumir o meu questionamento para o palestrante do Sarau da Feira, aquecimento cultural para a XVI edição da Feira Pan-Amazônica na capital paraense: "Como Nelson ia encarar, se vivo fosse, questões como cotas raciais, casamento gay e feminismo radical?" E completei: "Será que não existe uma certa exploração de Nelson Rodrigues por parte da esquerda cultural?"

A resposta que obtive resumiu-se a dizer que "hoje, mesmo com 100 anos, ele seria ainda mais conservador". Não há como discordar do professor Fadel nessa questão. De resto, o esforço de imaginação não me pareceu apropriado para a ocasião e ele parou por ali. Eu sei que não foi fácil responder.

Não é estranho que a esquerda cultural que domina esse país seja tão fascinada por um escritor e dramaturgo que, se vivo hoje em dia, seria uma pedra no sapato do politicamente correto? 

Muitos foram tão politicamente conservadores e 'reacionários' como Nelson Rodrigues e solenemente ignorados e esquecidos pela esquerda. Assim foi e permanece em relação a Paulo Francis, Roberto Campos, Gustavo Corção, Bruno Tolentino, entre outros. Mas existe uma explicação plausível: a obra de Nelson Rodrigues é perfeitamente instrumental para a causa do marxismo cultural na destruição da instituição da família e da moral cristã.

A própria definição de Nelson como 'anjo pornográfico" me parece ter sido assimilada em uma publicidade bem calculada para fazer do dramaturgo fluminense uma espécie de Foucault carioca, algo como uma Bruna Surfistinha de eras mais pudicas ou um prequel do Mr. Catra. 

O professor, que não me parecia mal-intencionado, mas sim surfar na crista da onda 'revisionista' da obra de Nelson, respondeu a várias perguntas de uma platéia excitada, como: "Quantas prostitutas Nelson Rodrigues se relacionava por noite?" e outras do mesmo top. Ao que respondia puxando sempre para o mesmo tom ao afirmar que Nelson era um escritor revolucionário a apontar a hipocrisia da família, do casamento e da educação cristã, etc. E quando um poeta local, a qual não recordo o nome agora, indagou se a obra de Nelson ecoava algo da tragédia grega, do padecimento do herói frente às leis divinas, outra vez respondeu que os personagens rodrigueanos não eram 'guerreiros' (sic). 

Em suma: a ordem da noite parecia ser pintar para uma platéia de estudantes de escola pública algo como Nelson ser em verdade um grande precursor dos bailes funks, das mulheres-frutas e do 'todo mundo é de todo mundo', esse ersatz nosso de cada dia. Até argumentos evolucionistas o professor usou para justificar a intensa vida de putaria que de alguma forma embasaria o espírito do grande dramaturgo boêmio...

Não é a primeira nem a última vez que assimilam a vida e a obra de outros para uma causa. Só no quesito 'o sexo como arma' temos o Dr. Freud redimensionado pela Escola de Frankfurt até parecer uma espécie de 'Marx da intimidade ocidental'. Até René Guenon, que estava mais preocupado com questões espirituais profundas teve sua crítica ao Ocidente assimilada na causa do marxismo cultural até se tornar uma espécie de Che Guevara hipster.


Mas para os revisionistas, talvez pouco importe a tônica maior da obra de Nelson Rodrigues, tão bem expressa na biografia escrita por Ruy Castro, como encontrada no excelente site do Grupo Tempo"a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz.  O personagem é vil, para que não o sejamos.  Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós.  A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo.  No "Crime e Castigo", Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado.  Ele matou por todos.  E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido.  Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros.  São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los."

Ora, não se enganem. A obra de Nelson Rodrigues, que completa 100 anos de nascimento nesse ano de 2012, só tem lugar no cânone 'progressista' da esquerda por servir bem como introdução a uma aula de 'educação' sexual. Por que não se interessam pelos relatos de proximidade da morte expressos em "Lições de Abismo" de Corção; pela obra poética colossal de Murilo Mendes, um homem que foi do ateísmo ao catolicismo mais místico; ou mesmo em escrever algo sério sobre a dramaturgia do paraense Carlos Correia Santos - aliás mediador do Sarau da Feira (que acaba de encenar um monólogo que praticamente encerra em texto teatral o que seria uma mentalidade revolucionária)? Ora, Porque não 'contribuem' em nada para a 'quebra de paradigmas sociais' no contexto de 'transformação social' das esquerdas.O que não deixa de ser uma relação conflituosa, cheia de ambiguidades - a elite prafentex não deixa de padecer de fascínio perante ao monstro reacionário que consegue ser mais safadinho do que uma Maria do Rosário. Daí é preciso 'democratizá-lo'. Ou seja, mistificá-lo até que o verdadeiro Nelson desapareça no entulho de estudos e montagens como apenas um velho machista. Machista - que inclusive era uma das definições ao meu ver simplistas do professor palestrante.

Nelson mostrava 'A vida como ela é', doa a quem doer. O sexo, a hipocrisia das famílias, dos casais e da sociedade carioca eram instrumentos para a pena de Nelson expressar a 'a miséria inconfessa de cada um de nós' e não um fim em si mesmo. Por isso, o 'anjo pornográfico' era conservador de direita. E certamente abominaria, tal como abominou também Pier Paolo Pasolini, essa banalização do pornográfico. Até os filmes pornôs antigos valorizavam a putaria em contextos de traição e de controvérsia amorosa. Hoje os atores só passam a mão na bunda da moça e já vão logo aos finalmentes. É isso o que querem fazer com Nelson Rodrigues. 

Pelo visto, no que depender da hegemonia educacional e cultural da esquerda que instrumentaliza os debates públicos, Toda Nudez (de sinceridade) ainda Será - e muito! - Castigada.



*



Imagem: "Toda Nudez Será Castigada" - montagem da Armazém Cia de Teatro

P. S - Já está mais do que na hora dos conservadores, direitistas, liberais e reacionários em geral comentarem a cena cultural brasileira. Ocupar os espaços do debate sobre as artes em geral. Falta crítica teatral, cinematográfica, de artes plásticas, musical do ponto de vista do legado intelectual do conservadorismo, por exemplo. E ainda tem bons artistas por aí que merecem ser resenhados. É preciso paciência e exercício da sensibilidade. Abraços.