5 de novembro de 2013

Breves impressões sobre o curta "Segurança Nível 5", por Karleno Márcio Bocarro


"...posso dizer que gostei muito do curta. A fotografia e atuação dos atores é impecável; o cenário bem escolhido. Agora a parte mais difícil, e fascinante: a história dá margem a várias interpretações. E isso é como deve ser! Um traço de grande arte. Tem aspectos do mito grego, assim o vejo. Quer dizer não somos senhores de nós mesmos, mas joguetes de deuses imprevisíveis; a história de Amor e Psique aponta nessa direção. De gnose, o mundo é mal e toda inocência é/será violada; ou um deus mal toma conta deste mundo, no caso do filme, uma espécie de controle autoritário. E isso leva a outro aspecto do filme: um sistema autoritário que controla a vida das pessoas; a ascensão, no sistema, se dá por obediência cega e atos de violência. Por fim, a garota, inocente e bela, ao descobrir a trama torna-se brutal, um ser pronto para matar... Foi o que vi, mas acho que há mais outros aspectos a considerar. Preciso revê-lo. Ah, gostei também como os textos poéticos (belíssimos) e narrativos foram intercalados, contribuindo para o avanço da trama e não para confundir o espectador."

Karleno Márcio Bocarro é escritor, professor de Literatura, formado em Filosofia pela Universidade Humbolt de Berlim
. Publicou o romance "As almas que se quebram no chão", pela editora É Realizações.

"Segurança Nível 5" é um curta-metragem de ficção (19 min) de Jorge Kellaris, produzido pelo GTO Soluções Cênicas e pela World Alone - Grécia. Com Luiz Fernando Vaz e Rafaella Cândido.


23 de outubro de 2013

Sobre a dignidade animal


Sinceramente sinto mais dignidade para com os animais de uma tourada ou de um rodeio do que com aqueles de um laboratório de testes. Por mais cruel que pareçam, as manifestações lúdicas entre homem e animal tem um caráter de balanceamento ontológico entre as espécies, uma iniciativa do espírito humano para compensar o uso vulgar da vida dos animais na alimentação, vestuário, etc. Uma tentativa de revestir a crueldade cotidiana de consumo e da exploração de algum sentido transcendente. A simplicidade - e por que não a sensibilidade e ingenuidade do homem do campo? - desenvolveu maneiras de re-integrar o animal no enredo cósmico, ressaltando sua relação de mútua cooperação mas também de conflito. Ao cavalo que labuta na lavoura oferece-se a oportunidade de voltar a ser selvagem na arena ou solto em uma corrida; ao touro de participar de um certame de vida e morte depois de ser celebrado com flores, rezas e cortejos; ao burro que leva chicotadas dá-se o papel de carregar o Salvador em autos de Natal e Paixão; em alguns países montam-se em porcos vestidos como seres humanos, etc. O contrário dessa 'crueldade' é a matança DESPERSONALIZADA e INDUSTRIAL dos animais, o que inclui os testes - embora necessários - de laboratório. Muito me pergunto se a brutalização do homem moderno não tem muito a ver com essa inevitável massificação do extermínio animal sem a recorrência de uma reconciliação ontológica, de uma consagração dessa relação entre homens e animais.

OBS: Nós brasileiros devíamos nos orgulhar muito de nossas manifestações folclóricas. O brasileiro criou o boi bumbá, por exemplo. Substituiu o sangue jorrando do touro ibérico pela teatralização, pelo fantoche. O efeito de balanceamento ontológico é o mesmo.

21 de setembro de 2013

O filme "Anjos e demônios" de Ron Howard e o fascínio de Dan Brown pela Igreja


"Se Dan Brown parece fascinado pela Igreja, é preciso reconhecer que não é o único: em Roma existe agora mais peregrinos que nunca"Pe. John Wauck, da prelazia pessoal do Opus Dei, nascido em Chicago, professor de literatura e comunicação da fé na Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma, estudou história da literatura na Universidade de Harvard.


Perto daquele fiasco que foi "Código da Vinci" (também de Ron Howard), considero-o até muito interessante em vários aspectos: a fotografia de Roma e que alude ao Vaticano é esplendorosa, as atuações são boas, a trilha é interessante e a edição excelente (em especial nas cenas de ação).

Ron Howard, entretanto, é bastante 'hollywoodiano". Acontece que quase sempre ele foi, na minha humilde opinião, um narrador bem competente. Certinhos, comerciais, porém bem dignos de um par de ingressos, foram por ele dirigidos "Uma Mente Brilhante", "Apollo 13" e "Cocoon" (meu preferido; a trama sobre ET's é mero pretexto pra falar da velhice).

Felizmente nesse filme Howard me surpreendeu ao revalorizar a sua habilidade narrativa em detrimento da verborragia e do 'enrolation' do desastroso "Código". 


Surpreendeu-me novamente o filme ao exibir no roteiro um raro equilíbrio no trato das questões entre fé e ciência, permitindo na tela uma dignidade a Santa Igreja e a Fé que é raríssima no cinema de hoje. 

Até me despertou curiosidade sobre o livro... 

Aí que buscando críticas sobre o filme achei essa fantástica entrevista de um padre da Opus Dei que afirma algo que há muito já disse sobre esses produtos culturais que usam/abusam de referências - principalmente negativas - sobre o catolicismo. Esses produtos referenciam-se a Igreja porque creem que nas imagens e símbolos pertencentes a ela residam um verdadeiro poder, uma irresistível atração e autenticidade. Falei disso também no artigo que fiz analisando o filme "Ágora", do diretor chileno Alejandro Amenábar.


Das peças e romances blasfemos da Revolução Francesa às paródias de Madonna e Lady Gaga, aludir a Santa Igreja e seus dogmas quase sempre redundaram em lucrativo sucesso. O Pe. John Wauck mata a charada ao comentar o livro. E provoca:

(essa passagem não consta no filme)

- Pe. Wauck: Dá a impressão de que estamos lendo o Catecismo da Igreja Católica, ao invés da novela de Dan Brown. A passagem é esta: 

"Pedro é a pedra. A fé de Pedro em Deus foi tão firme, que Jesus o chamou de ‘a pedra’, o discípulo incomovível sobre cujos ombros Jesus construiria sua Igreja. Neste lugar, pensou Langdon, na colina do Vaticano, Pedro havia sido crucificado e enterrado. Os primeiros cristãos construíram um pequeno santuário sobre o seu túmulo. À medida que o cristianismo se estendeu, o santuário cresceu, passo a passo, até converter-se nesta basílica colossal. Toda a fé católica havia sido levantada, literalmente, sobre São Pedro. A pedra"
(“Anjos e demônios”, cap. 118).

O filme demonstra no roteiro perplexidade semelhante diante dos mistérios da Santa Sé deixando posicionamentos mais radicais em suspenso.

Entrevistador: Você não acha que com esta entrevista estamos promovendo gratuitamente o filme?

- Pe. Wauck: Quem está promovendo quem? Esta é a questão. Possivelmente, há publicidade nas duas direções, mas se consideramos o tempo, as energias e os milhões de dólares empregados na produção e promoção deste filme, eu diria que nós estamos levando a melhor parte. Isto é, que talvez Deus esteja se servindo de Hollywood para atrair a atenção de alguns sobre as riquezas da fé e da cultura católicas.

Isso me faz lembrar a velha constatação de como a Igreja cresce mesmo na adversidade. E que eu gosto ainda mais desse filme.

Aqui o trailer (que, é claro, ressalta os aspectos conspiratórios da trama):



29 de julho de 2013

Quero dar emprego para os jovens, Santo Padre, mas o Estado não deixa


É muito bonita e reconfortante a mensagem do Papa Francisco pela inclusão dos jovens do mercado de trabalho, sua preocupação com o desemprego em massa, etc. Mas sinto uma aflição imensa com a falta de uma mensagem que expresse com mais objetividade essa questão. Quando o Papa aponta uma crítica para a globalização procuro fazer um esforço no sentido de interpretar essa crítica de um ponto de vista que conflita com uma atitude humanista promovida pela Igreja. No entanto, temo que as palavras do Papa apenas reforcem o brutal avanço do Estado sobre as iniciativas individuais. No mundo todo, sob o pretexto de justiça social, os governos estão destruindo a iniciativa dos que geram empregos, principalmente para os mais jovens: impostos draconianos, políticas esbanjadoras que promovem vícios sociais, incremento da burocracia, leis que paralisam o crescimento das empresas, desindustrialização, empobrecimento do ensino, promoção de ideologias marxistas nas escolas, etc. Sem contar a tropa avant-garde do estatismo que agora chega com força total, prometendo um futuro ainda mais sombrio para quem produz: a obrigação de cumprir rituais de responsabilidade social, ambiental, com as minorias, movimentos sociais, etc. E tudo isso para sustentar Estados que, além de podres de corrupção, não fazem outra coisa a não ser perseguir a Igreja e seus fiéis com leis que a médio-prazo apenas expulsarão os cristãos da vida pública. É fácil perceber isso em discursos como o da presidente Dilma no início da JMJ, onde ela flagrantemente tentou parasitar a ação e a autoridade espiritual do Papa para os interesses desse César amoral e sem limites. É fácil perceber isso na lisonja permanente do Papa como 'o papa da ruptura' e outros epítetos que parecem querer pautar a ação da Igreja para um compromisso mais radical com a tal 'modernidade'.

Quando o Papa fala da 'idolatria do dinheiro' eu consigo entender a conexão com os ensinamentos evangélicos. Mas para a cultura geral eivada de preconceitos de origem marxista, soa como uma condenação a quem empreende, a quem busca oferecer serviços a sociedade, finalmente, ao empresário, o empreendedor. O rebanho, ao meu parecer, volta-se então para as promessas dos políticos, todas bem trabalhadas nas mais elaboradas técnicas publicitárias para explorar o ressentimento, a inveja, o ódio e, como é de se esperar, aumentar ainda mais o poder do Estado Moderno e sua capacidade de promover mais materialismo e destruição dos pilares civilizacionais.

Longe de mim dizer ao Papa o que ele tem que fazer e pensar. Não faria isso nem que eu fosse um católico exemplar. Escrevo tudo isso como quem busca cada vez mais o amor da sua Igreja, como um filho que reclama com a mãe o porquê de não poder comer mais doces do que eu gostaria, que busca compreensão. Sei que temos que 'dar a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César', mas é impossível não sentir aflição com essa sensação de abandono que fica quando o Papa nos pede para ajudar os jovens, e não dá nem um pio em prol daqueles que tentam possibilitar isso no dia-a-dia, na vida real, lutando como Davis contra um Golias cada vez mais cruel e abusado.

15 de junho de 2013

Roleta Russa



Fiz no meu perfil do Facebook uma pequena reflexão sobre os protestos de 'estudantes' em SP. Reproduzo aqui e acrescento um videoclipe que gostaria muito que vocês assistissem (acho bastante sinistro esse vídeo - não sei se é um aviso ou se estão esfregando algo na nossa cara):

"O motor psicológico de todo revolucionário é a necessidade por transgressão típica da adolescência. Não é por nada que a mídia chama o manifestante de 'jovem' - sabe que está lidando com elementos inseguros, sedentos de ação e de acontecimentos que transcendam sua mediocridade cotidiana, com déficit de imaginação e de sentido existencial; daí importante lisonjeá-los.Toda revolução usa o jovem como bucha de canhão e logo depois os elimina aos milhões em gulags, campos de trabalho forçados, massacres, programas de lavagem cerebral em massa, etc; afinal, hormônios são incontroláveis. O homem que sonha é uma granada que explode por toda a eternidade. Embora cada vez mais perigosa, no âmbito particular, a transgressão quase sempre é benéfica e parte do processo de amadurecimento da personalidade (é o tema preferido dos filmes de Milos Forman, confiram); já no âmbito da sociedade a transgressão é uma roleta russa. Nem todas as forças da sociedade são irracionais e instintivas como esses grupos de adolescentes. As elites intelectuais excitam-se com revoluções como os jogadores com o embaralhar das cartas. Os jovens não sabem o que querem; no entanto comunistas, nazistas, fascistas, maçons, cartéis, seitas religiosas, grupos tradicionais organizados, famílias mafiosas e qualquer grupo que não faça da masturbação e do uso diário de drogas emburrecedoras sua principal ocupação lúdica sabe. O Coringa vai parar inevitavelmente na mão de quem olha o jogo como um todo; aos jovens, como sempre, restará a pilha de descarte."



1 de junho de 2013

Síndrome de Raul Gil



Um dos grandes males da minha geração é algo que chamo, assim de brincadeira, de "Síndrome de Raul Gil". Essa geração cresceu com uma expectativa exageradíssima sobre sua capacidade e sobre o seu destino. Foi marcada com um senso desproporcional de protagonismo e dotada de um senso de realização pessoal irracional muitas vezes delirante. Ninguém consegue convencer as pessoas dessa geração, quando é o caso, de que não sabem cantar, nem atuar, nem dançar, que são feios, suas vozes são horríveis, não tem nenhum carisma nem talento e que, muitas vezes, são ignorantes e/ou burros demais para o que pretendem fazer. Nada consegue tirá-las da sua ilusão de 'gracinha da mamãe' - tudo as machuca, desrespeita, ofende suas heroicas escaladas rumo ao Olimpo. Consideram-se prontos e acabados desde o nascimento, celebridades ainda não descobertas apenas pela inveja que imaginam receber de todos ao seu redor. Cada uma dessas pessoas uma revelação 'urbi et orbi' para o mundo. Às vezes até tem algum talento, mas não conseguem desenvolvê-lo por causa da incapacidade total de avaliar seus potenciais com honestidade.A frustração da não-realização dos seus sonhos de infância causa então um sofrimento enorme nestas pessoas. Elas, muitas vezes, acabam caindo na promiscuidade e nas drogas para fugir de uma realidade que avoluma-se cada vez diante dos seus olhos: a de que provavelmente são medíocres. E mutilam-se: tomam esteroides, tentam afirmar a personalidade tatuando o corpo inteiro com símbolos que desconhecem, implantam silicone, fazem plásticas agressivas, ficam anoréxicas, são vitimizadas pela moda e pelo consumismo voraz.Talvez até nem sejam mesmo medíocres; mas como convencê-las de que elas precisam se aperfeiçoar? Jamais conseguem se desenvolver em nada por pura incapacidade de exercer alguma humildade sobre si mesmos. São imunes a qualquer 'anamnese' possível. Em busca de ser estrelas comportam-se como buracos negros. Talvez por isso a minha geração seja tão ressentida e magoada. As ideologias enxergam, com muita esperteza, esse mar cheio de peixes e atiram a rede que volta farta. Eu sei que 'tudo-pode-ser-só-basta-acreditar-tudo-que-quiser-você-será', mas talento é algo raro. E fama é algo inexplicável; está aí o You Tube para comprovar. A celebridade não é um direito, mas sim uma graça efêmera que vai e volta como o vento. Ainda existe uma coisa chamada 'sorte'. É claro que muitos conseguem se libertar dessa síndrome e encontrar alguma consolação na vida. E muitas vezes ela é encontrada em uma inesperada habilidade de cultivar jardins, no prazer da contemplação de um mistério religioso ou no amor de uma mulher e filhos. Muitos infelizmente não conseguem e perecem pelo caminho na tristeza infinita de uma sarjeta, no fundo de uma espiritual garrafa de desalentos eternos. A nossa geração precisa retornar urgentemente ao empreendimento mais essencial da jornada humana sobre a Terra, empreendimento mesmo do qual os poetas, profetas e filósofos perseguiram com tanta obsessão e esperança: a busca do 'Eu' e a conquista definitiva de uma verdadeira personalidade.

*cena do filme "Inland Empire", de David Lynch

31 de maio de 2013

Nero Redivivus


É mais comum sentir compaixão pela condição existencial de um homossexual ao ouvir as duras admoestações de um pastor evangélico do que sentir ódio. Até mesmo um carrasco ou carcereiro deve sentir uma ponta de dó em relação aquele que é condenado de forma tão irreversível; dirá o que não sente um homem comum diante dessa radicalidade. Por isso mesmo a invectiva fatalista bíblica move mais à oração do que ao ódio, e move fortissimamente justamente por sua aparente irreversibilidade. A militância gay, na melhor tradição do marxismo cultural, finge não saber disso. E, na melhor tradição revolucionária, 'acusa os outros do que faz' - ela sim, condenando implacavelmente as vozes dissonantes ao isolamento total com uma autoridade artificial respaldada pelas armas do Estado todo-poderoso. Enxerga autoritarismo em toda parte porque só enxerga sua expressão através do autoritarismo. Aqueles que dizem lutar em nome do amor deveriam orar pela suposta ignorância dos Felicianos da vida. Ingenuidade minha; na metafísica gay nem mesmo o falecido deputado Clodovil merece alguma misericórdia: agoniza eternamente no inferno dos que sofrem com 'homofobia internalizada'. As ideologias não perdoam jamais os seus insubordinados. O Deus judaico-cristão pode até ser cruel, mas o seu povo reza para aplacar-lhe a fúria. Onde estão os gays dispostos a aplacar a fúria de um Jean Wyllys?

Existe alguma outra forma mais eficiente de elevar a enésima potência o ódio aos gays do que transformá-los em uma casta? Não conheço. Não é à toa que a cultura popular odeia políticos e bandidos armados até os dentes. Não é por menos que o ódio maior é o ódio de Lúcifer contra o inabarcável poder do Criador. E que povos inteiros enlouqueceram de ódio pelos Césares do Império Romano. O antiamericanismo que a cultura moderna respira como oxigênio é outra prova eloquente dessa equação. Se existe algo que atiça o ódio é o poder, em especial a disparidade no poder de se exercer o poder. 

O poder autoritário do vitimismo pode então até ultrapassar os próprios instrumentos desse mesmo Estado. Para a parada gay de SP, a polícia militar ouvirá dicas para abordar gays e travestis. Terão que aprender coisas como a não se acotovelarem entre si ou que não devem se incomodar com eventuais beliscões e cantadas devido 'ao fetiche exercido pelo fardamento'. É proibido rir, chocar-se ou indignar-se, e expressar, ainda que de forma discreta, a apreensão de algo que possa simplesmente vir a ser 'engraçado' ou 'pitoresco'. A luta gay é pela liberdade de expressão, é claro. A dos policiais de se expressarem como robôs obedientes. Se algo assim pode ser exigido dos agentes estatais o que não será exigido um dia da dona Marcelina lá da periferia que vai ao culto todos os fins de semana? Qual a diferença de exigências como estas das exigências de um César ou de um cortejo de um monarca absolutista? Ou dos caprichos de uma Rainha de Copas? Enquanto os gays se divertem fingindo-se de oprimidos, ao mesmo tempo em que dominam a cultura humana com os seus símbolos na moda, na música, no cinema, no teatro, na literatura, no mercado publicitário, etc, as famílias francesas apanham da polícia nas ruas de Paris.  

Com o tempo isso semeará um ódio irracional perigoso. O poder desmesurado logo torna-se veículo para desencadear as mais diabólicas forças. Uma vez odiados por toda a gente, os gays exigirão - como exigiram desesperadamente todos os tiranos - o amor das vítimas do seu poder. Como a militância homossexual não conhece limites, certamente pedirão coisas ainda mais absurdas para a sociedade, em uma espiral decadente de loucura e destruição, principalmente da sanidade deles próprios. Afinal, um direito ao livre usufruto das partes e possibilidades íntimas jamais se afirmará como uma autoridade legítima. Então nem a literatura poderá prever as insanidades que virão.

Destaco o trecho do excelente e imperdível artigo de Justin Raimondo:

"Os líderes do movimento gay estão brincando com fogo. A grande tragédia é que não serão eles os únicos que sairão queimados. A volatilidade dos temas que eles vêm levantando – temas que envolvem religião, família e as mais elementares premissas do que é ser humano – cria o risco de uma explosão social pela qual eles devem ser responsabilizados. A ousadia da tentativa de se introduzir um “currículo homossexual positivo” nas escolas públicas, a postura de vítimas militantes que não toleram qualquer questionamento, a intolerância brutal que se segue à tomada do poder pelos homossexuais em guetos urbanos como São Francisco – tudo isso, somado ao fato de que o próprio paradigma dos direitos dos homossexuais representa uma intolerável invasão da liberdade, tende a produzir uma reação da maioria."

O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente. Silas Malafaia vira herói da liberdade de expressão. E Jean Wyllys não consegue arrumar um namorado.

*imagem do filme Saló, do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. 






24 de abril de 2013

A QUEDA


Nunca imaginei que veria o tempo do orgulho 
Da precipitação de tudo o que é transcendente e sagrado 
Do materialismo mais apaixonado 
Da mais veemente degradação 
Da fúria apaixonada e arrebatada das baixezas 
Dos peitos declarando imunidade aos pecados todos 
Dos invertidos santos 
Dos falhos de toda fraqueza de consciência.

Tempo dos super-homens
E de um eterno presente
Com fortalezas do devir. 

Pais e avós apenas dignos de escárnio, deboche e indiferença. 
De anjos incapazes de reconhecer o verdadeiro, 
De chorar o belo,
De sangrar alguma indiferença respeitosa
- ao menos. 

Não mais drama 
A poesia apenas um meio 
A comédia impossível 
Vermelho e negro em toda parte. 
Caveiras de diamante sorrindo 
Festa sem fim 
Melancólico banquete
Onde não mais se distingue quem se serve
Quem é servido? 
Sem porta de entrada.
Sem porta de saída. 
Delícias que não saciam jamais

A cauda do dragão é avistada nas nuvens de chuva
E o deus ex machina nunca vem.

*
Francisco Goya’s The Pilgrimage of St. Isidro (detalhe) 

5 de abril de 2013

Matrix, Kafka e o retorno de Cthulhu




O pesadelo daquele filme "Matrix" agora é um fato consumado. Onde quer que alguém sussurre dizendo coisas interpretadas como ofensivas às sensibilidades dos valores 'pogreçistas', lá estará um 'representante' das minorias, dos excluídos, daqueles que 'merecem herdar a Terra'. Lá estarão eles nas redes sociais, na escola, no trabalho, na igreja, no centro comunitário and everywhere para o inquirir, ameaçar, neutralizar e, é claro, reincorporá-lo ao ethos reinante, sob pena de exclusão total do mundo das 'pessoas legais'. São o retrato exato da descrição do personagem Morpheus no filme dos Wachowski: "E muitas delas estão tão inertes, tão desesperadamente dependentes do sistema, que irão lutar para protegê-lo." 

Em um mundo no qual tudo é relativo, o bom-mocismo parece ser o último recurso, a derradeira tábua de civilização onde as massas se agarraram neste naufrágio de todas as certezas universais; um desesperado arremedo de ordem em que 'não ser polêmico', 'ser educado', 'ser socialmente responsável', "praticar a sustentabilidade' parece garantir que todos estarão virtualmente seguros contra o descontrole de seus devaneios sobre o que é real, verdadeiro, ululantemente óbvio. Just dance!

Não há mais necessidade de um ditador cuja personalidade inspire a ação, a reação e omissão seletivas. Dispensáveis as leis, as guilhotinas, os paredões, os tribunais de confissões públicas, até mesmo as teletelas orwellianas. As diretrizes do Partido estão todas perfeitamente implantadas nos costumes.. Todo cidadão já caminha para ser um defensor inconsciente da Cartilha, feliz, satisfeito, ufano em sua pátria comportamental, 'imperativo' e 'categórico'. Cada cidadão júri, um juiz e o executor. Uma epidemia de Stálins. Tal como no último filme da trilogia cyberpunk, o inimigo entropicamente ocupa todos os espaços, viraliza-se, cria infinitas cópias de si mesmo.

Reinaldo Azevedo bem citou Gramsci comentando o episódio Marco Feliciano, que bem espelha os novos tempos:

“O Moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em que tem como ponto de referência o próprio Moderno Príncipe e serve ou para aumentar o seu poder ou para opor-se a ele. O Moderno Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a vida e de todas as relações de costume”.

O 'moderno príncipe' já é a autoridade máxima. É "O Castelo" kafkiano ao qual todos se referenciam mas ninguém sabe onde está. Todos acordados, da noite para o dia, 'transformados em um gigantesco inseto'.

O outro já é virtual. O próximo já nos aparece como um zumbi merecedor de uma bela e revolucionária tela de miolos espelhados na parede. Como na ficção (oi?), logo chegará o momento em que 'você será um de nós ou um deles'. E, em um mundo de completa desumanização, não é difícil prever que seres humanos serão empilhados aos montes, aos milhões.

Os tentáculos de "Cthulhu" já aparecem entre as nuvens de tempestade.

"Bem vindos ao deserto do real."


19 de março de 2013

Fist Fucking



A obra é interessante. Mas é um sintoma dos nossos tempos - como Lady Gaga. Perspicaz a opinião da Sarah Fernandes de que "o título da minha dúvida deixa mais ou menos claro que a obra abaixo está mais próxima à representação de uma época onde o homem puxa o próprio saco e casa-se com o próprio espelho em favor da "própria liberdade", do que uma representação que possa gerar contemplação"

Exatamente. Não parece ser uma obra que busca inspirar virtudes em primeiro lugar, mas espelhar um 'zeitgest', um estado de coisas. Se a arte há de ser bem-feita ou mal-feita, jamais boa ou má em si, como insinuou Oscar Wilde, podemos dizer que ela consegue o seu intento.

Li em um antigo ensaio da Revista Bravo um insight bem interessante sobre a arte que se diz contemporânea, tão bem expressa em suas excentricidades na Bienal de São Paulo. Sobre a Bienal paulista de 98, disse Teixeira Coelho: 


"Recordo conto de Borges sobre o cartógrafo que desenhava um mapa tão abundante que o tamanho do papel era o mesmo do terreno representado: escala um por um. Essa fábula serve como imagem de parte da arte contemporânea, herdeira renitente de uma sociedade da abundância já finda e que não faz economia de meios - acaso não de propósito, mas por deficiência representacional. Esses ambientes constroem-se por metonímia (aproximação no espaço entre um signo e outro, uma coisa e outra), enquanto a grande arte ainda seja ainda aquela que procede da metáfora, substituição da coisa por um signo. Metáfora, operação que cria, versus metonímia, operação que combina o já existente."


Não sei vocês, mas gosto da instalação acima. Gosto de pensar que o Dragão passou e deixou no caminho um rastro de homens orgulhosos de achar que tudo podem dar a si, nem que seja a boa e velha fellatio (do qual escutei uma vez chamarem-na de 'o apogeu do sexo'). Recordou-me uma peça bem polêmica de Newton Moreno, levada aos palcos por Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas, onde dois homens encontravam-se para praticar o fist-fucking (prática de penetrar o alheio com o punho). A peça, muito bem escrita e representada, mesmo levando a risos nervosos, tinha um quê melancólico de metaforização da busca do homem por um sentido mais profundo (ui!), acessível para muitos apenas como perversão sexual.

Nunca esqueçam que há mais nus hoje na Capela Sistina do que em Hollywood.

Agora comparem a obra abaixo com a que eu vi na Bienal de São Paulo do ano passado, tortura que apreciei na companhia do meu querido cicerone Francisco Souza. Um carrinho de brinquedo batendo contra um pedaço 
de bolo sob uma tábua mais ou menos inclinada.





Comentem com moderação...

9 de março de 2013

As drogas e o suicídio da personalidade



Inspirado pelo depoimento emocionado e cortante da mulher do infeliz vocalista da banda Charlie Brown, o tal Chorão, escrevi essa postagem no perfil do meu Facebook. É o motivo principal pelo que eu não gosto de drogas. Perdi grandes amigos para o poder corruptivo dessa merda. Uma perda, para mim, pior que a da morte. Leiam:

"Drogas matam. Sim, matam. Mas isso não é o pior efeito da droga em nossa sociedade. O drogado que morre alivia-se a si próprio e os que estão ao seu redor tragicamente. A droga vai além. A droga piora o que há de pior em nós. Cada uma delas tem o seu pecado favorito: algumas promovem a luxúria, outras a gula, ou a ira, ou a preguiça. Mas todas sem exceção - depois que debilitam o livre-arbítrio, o discernimento mental e a saúde física das pessoas - promovem a avareza, a inveja e principalmente o orgulho - pecado demoníaco por excelência: o pecado da vaidade desmesurada, da tentação do maldito sob pretexto de pureza, da falsa superioridade existencial por desafiar a realidade ainda que ela seja a dos limites do próprio corpo. Para justificar o prazer da droga, o drogado começa a achar aceitável a relativização de tudo. Para sustentar o vício começa a achar relativa a necessidade de ser avarento com o que tem ou com o que pode obter para poder gastar altas somas com a sua 'viagem; passa a invejar os que obtém os mesmos bens necessários ao seu prazer caindo facilmente na tentação das ideologias utilitaristas; e, finalmente, chega à negação de toda falta de controle por parte de suas faculdades mentais e espirituais, agravando ainda mais a sua demência existencial em um arroubo de orgulho desmesurado imune a qualquer admoestação. Essa corrupção íntima afeta gravemente as relações dessas pessoas consigo próprias e com o mundo de forma tão incontrolável e avassaladora que nada mais resta a elas que não se agarrar a um solipsismo suicida que, com sorte, é aproveitado por algo ou alguém; mas que, na maioria das vezes, leva mesmo é à destruição total da personalidade. A droga pode levar a mortes bem mais prolongadas e dolorosas."

14 de fevereiro de 2013

Passos



Ó Nossa Senhora!
Tu que sentistes cada passo do Menino 
Tu que sentiu cada passo Dele no deserto
Tu que sentes ainda cada passo rumo ao Calvário
E que
Eternamente sentirás todos os passos do Mundo.
Responde para mim, madre dolorosa:
"Por que por mim tudo passa
E aquilo que bem passa
Pouco demora?"

15 de janeiro de 2013

"Fogo Cruel em Lua de Mel" da Cia Fé Cênica



Primeira montagem do grupo, o espetáculo "Fogo Cruel em Lua de Mel", com texto de Nazareno Tourinho, abriu a cena teatral deste ano na capital paraense. A Cia Fé Cênica comemora seis anos de atividades na cidade de São Paulo montando autores do estado do Pará, tendo já encenado peças de Saulo Sisnando e Carlos Correia Santos. Tive a honra de ser convidado para a nova estréia da peça em Belém, onde também compareceu, o ilustríssimo Nazareno Tourinho, que com 78 anos de idade ainda faz questão de assistir o que andam fazendo com os seus textos.

Sobre Nazareno, o site G1 resume:

"Nazareno Tourinho tem 78 anos, é jornalista e um dos dramaturgos mais atuantes na cena paraense. Integrante da Academia Paraense de Letras, publicou várias de suas obras e foi premiado em concursos nacionais e internacionais, como, o IV Concurso de Dramaturgia Latino-americano Andres Bello, realizado na Venezuela."


Para saber mais, a UFPA tem uma página com a sua biografia.


Do Nazareno tomei leitura das peças Lei é Lei e Está Acabado, Severa Romana, Fogo Cruel em Lua-de-Mel, Amor de Louco Nunca é Pouco, A Greve do Amor e Uma Caprichosa Manifestação de Espíritos. Infelizmente ainda não li a peça que dizem ter sido muito elogiada por Gerald Thomas, "Pai Antonio", e por incrível que pareça, também não li a mais famosa, "Nó de 4 pernas", que inclusive foi montada em 2012 por jovens atores e diretores da Escola de Teatro da UFPA. 


O que tenho a dizer sobre a dramaturgia de Nazareno Tourinho são três impressões fortíssimas que sempre causaram imenso prazer a este que vos escreve: um texto ágil como uma partida de pingue-pongue, monólogos capazes de consagrar atores e a extrema sensibilidade na construção de personagens que começam sempre como arquétipos e terminam desviscerados em assustadora humanidade. 


Sempre parece que Nazareno quer julgar as personagens, mas, no meio do caminho de sua escrita (que alcança momentos de um lirismo arrebatador) ele as vai escutando, acalentando, namorando e, finalmente, amando e perdoando. Tenho que confessar que acho Nazareno uma figura enigmática: é espírita, assumidamente comunista e, como espera-se dos artistas verdadeiros, com uma obra que ultrapassa todas essas preferências. Não é a toa que foi comparado com Ariano Suassuna, um mestre da dramaturgia - arrisco dizer - mundial, outro que não ligava para 'realismo socialista' ou coisa parecida. Bons tempos em que a esquerda contemplava o mundo e transformava isso em arte - nem sempre boa, nem sempre má, mas com sinceridade. Hoje tudo virou sinopse acadêmica para jantares inteligentes. 


Adiante com o espetáculo.


"Fogo Cruel em Lua de Mel", segundo o G1: 


"é situada na noite de núpcias de Gil e Elza, que se casaram após onze anos de namoro.  O que poderia ser uma noite de amor acaba se tornando o momento em que as personagens discutem as diferenças de personalidade. Um incêndio no hotel e a possibilidade da morte fazem com que as personagens revejam os seus valores, o que muda o rumo de toda a peça. As personagens vivem momentos de grande contradição quando desconfiam que possam morrer em uma situação que é inusitada, mas que é possível."


Ela é psicóloga e cristã praticante, ele um poeta declaradamente ateu. A recém-casada prometeu a Santo Antonio o absurdo: que morreria em castidade se ela finalmente casasse com o noivo Gil. A revelação disso no leito nupcial, após todas as tentativas de 'acasalamento', deixa o marido de Elza furioso. Este começa a fazer chacota da fé da esposa e principalmente, do santo casamenteiro, também começando a beber e a tratá-la grosseiramente  No entanto, Elza é inflexível ao ponto de dormir agarrada com o santo e Gil está prestes a anular o casamento. Eis que o incêndio tudo muda. Presos no edifício em chamas, concluem que não escaparão com vida e entram em pânico. Acontece o impensável. Gil, com medo de morrer, exige que a esposa, a qual julga plena da graça de Deus, reze para que um milagre aconteça. Elza, surpreendentemente, recusa o convite para rezar e passa a exigir que o marido se comporte como homem e a salve. Em pouco tempo, incêndio piorando, a situação inverte-se completamente: o poeta ateu confessa seus pecados e redescobre o mistério da existência; a psicóloga carola lamenta todos os prazeres que perdeu na vida e tenta seduzir o marido. Mas ele, Gil, não quer mais o corpo da mulher. Ambos queimam. Gil implorando misericórdia e Elza implorando por sexo. O fogo toma conta do cenário e se encerra a peça.


O texto do Nazareno é deliciosamente direto, sem enrolação nem pedantismo, um presente para os atores. E o ator Geraldo Machado parece ter percebido bem isso. O ator paulistano, apesar de apressar as falas no início, foi entregando-se ao jogo e atingiu o que se espera dos preciosos monólogos da peça: entrega total. Ao contrário, a atriz Viviane Bernard, teve uma estréia ruim, nervosa, facilitada (ou dificultada?) pela natureza mais contida da personagem Elza. Geraldo Machado queimava com beleza no ato final; Viviane perdeu a oportunidade de se deixar queimar e desvelar a todos a hipocrisia da personagem.


Esperava mais da direção do Claudio Marinho nesse espetáculo. Não entendi por que um texto tão gostoso sofre tanto desperdício em cena. A tendência do ator é 'metralhar' o texto e resolver a cena da forma mais confortável. Peças com casais trazem raras oportunidades para diretores trabalharem pequenos gestos, atos falhos, olhares discretos, contradições sentimentais, pudores. Não sei se por que era estréia depois de três anos, mas parece que a direção não voltou a deitar naquela cama com eles. Tinha-se pressa até de olhar pelas janelas. Na verdade, tinha-se pressa de tudo. Tanto que o espetáculo acabou e um casal de amigos ao meu lado - que estava se divertindo - disse, espantado: "Já?" A direção, no entanto, acerta na escolha de Sonia Lopes - milagreira da luz na cena teatral paraense - e nas soluções do cenário: simples, sem tirar o foco do texto. 

O texto do Nazareno (e também o de Carlos Correia Santos, dramaturgo paraense que já critiquei aqui no blog) tem um dom incrível: mesmo que você pouco ou nada faça para dirigi-lo, ele funciona graças a sua estrutura impecável. As peças do Nazareno vão além: ensaiam perfeitamente uma síntese, uma antítese e uma tese que - milagrosamente - fica suspensa como nuvens sobre os ouvintes, eternizando-se na platéia. Essa dialética o Partidão não vigia por pura incapacidade de abstração. Graças a Deus. Nazareno, sim, merecia o nome de uma rua, uma bonita.


Faltou Fé Cênica. Da atriz no ator, de ambos na direção, da direção em Nazareno. Naquela cama todos têm que arder no final
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9 de janeiro de 2013

Po-e-ma

"O que tenho pra contá
É que o diabo nos faz pecá
pra nossa alma explorá
nossa culpa manipulá
a misericórdia negá
e assim nos instá
a ele procurá
de Deus se magoá
e assim devagá
triste desesperá
da lama se orgulhá
do amor duvidá
do ódio esperá
vingança contra Quem lá
nos trouxe para cá
e assim nos afastá
do nosso belo lá
que nas nuvens está
pra quem se perdoa
e pra quem perdoá."

Luiz Fernando Vaz

3 de janeiro de 2013

Sobre mortos-vivos e Vitor Frankl


Assisti recentemente as duas primeiras temporadas do famoso seriado americano "The Walking Dead" e posso afirmar que fiquei fascinado, não só pela produção impecável e pela qualidade extrema dos atores, mas principalmente pela qualidade dos roteiros. Fábio Argondizo, um amigo do Facebook, chamou a minha atenção para a semelhança dramática da série com a vivência precária e radical dos campos de concentração narrada pelo psiquiatra Vitor Frankl no seu livro "Em Busca do Sentido". De fato, o seriado - pelo menos nas duas temporadas - merece destaque por espremer seus protagonistas entre duas questões em meio a uma corrida frenética pela sobrevivência em um mundo apocalíptico: "Por que eu não quero morrer?" e "Por que eu deveria viver?"

Em "The Walking Dead" o mundo é repentinamente tomado por zumbis. Não há respostas sobre o que aconteceu: apenas cadáveres ambulantes em toda parte querendo devorar a todos. Não há tempo pra entender muita coisa. Todos estão o tempo inteiro correndo, seja fugindo dos mortos-vivos, procurando víveres ou evitando sucumbir ao desespero dos que ainda estão vivos. Para o desespero dos desarmamentistas, armas de fogo e balas tornam-se artigos de primeiríssima necessidade para evitar a voracidade dos zumbis ou o assédio de outros humanos igualmente desesperados. A civilização desabou: não há Estado, lei, mídia, nada; apenas destruição e morte. A ordem é sobreviver; ainda que não se saiba até quando nem para quê.

Apesar da violência gráfica perturbadora do seriado (sangue, massa encefálica e vísceras são café pequeno), é o drama humano que sobressalta na tela com uma crueza pouco vista. Todos os mesmos personagens poderiam estar em um campo de concentração: o homem que quer salvar a sua família, a mulher indefesa e incapaz de defender a si e aos outros, o idoso que teme tornar-se descartável, a jovem impetuosa que quer deixar de ser a eterna vítima, a criança que insiste em manter a inocência em meio ao caos, etc. O personagem central, o policial Rick, no episódio piloto, protagoniza a cena síntese do seriado quando observa um zumbi com metade do corpo destruído arrastando-se desesperadamente como em uma agonia eterna. O 'caubói' o observa calmamente, com compaixão, como se pensasse "Por que eu não quero matá-lo?" ou "Por que deveria deixá-lo viver nesse estado?", antes que, com pesar, desferisse um tiro na cabeça do errante infeliz. A cena e o personagem do caubói sintetizam bem o diferencial de Vitor Frankl para sobreviver ao absurdo. No comentário de Olavo de Carvalho à obra supracitada: "Frankl entrou no campo (de concentração) firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo."* A alusão ao caubói estilo xerife não é gratuita e dialoga com os grandes westerns. Mais uma vez, o comentário do filósofo brasileiro sobre Frankl, parece sintetizar o personagem: "Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação."* Rick nega a si o sabor da matança e da destruição irrefletida e tem na família e nos amigos a motivação para a sobrevivência e para a resistência moral. É claro que não vai ser fácil.

Shane, o amigo policial de Rick, é uma espécie de duplo do personagem central Rick. Crente de que o amigo estava morto, Shane toma para sua proteção a mulher e o filho do caubói, ganhando assim uma motivação para lutar. A volta do parceiro gera então uma rivalidade ao estilo girardiano com consequências trágicas. Os amigos não disputam apenas uma mulher, mas sim uma motivação vital para continuarem lutando naquele mundo absolutamente hostil e sem sentido. É o 'outro', expresso na mulher e na criança, que os mantém vivos, no lato sentido da palavra.

O fim da civilização no seriado derruba de uma vez por todas os paradigmas 'modernos'. Em outra cena simbólica, algumas mulheres do grupo de sobreviventes queixam-se de 'é preciso repensar a divisão das tarefas ali no acampamento'. A queixa é vã: em um mundo de sobrevivência atroz não há como abrir mão dos homens - naturalmente mais fortes e guerreiros - na defesa do grupo, as tarefas domesticas e menos perigosas acabam ficando mesmo com as mulheres. A cena demonstra bem como todos os ismos caem facilmente por terra em uma situação extrema: feminismos e 'gêneros' tornam-se irrelevantes e impraticáveis e não há lugar para o egoísmo ideológico. É imperiosa a necessidade de se reconhecer o Outro e a impossibilidade da auto-suficiência tão cara ao homem e a mulher de hoje. E é justamente por causa dessa incapacidade de conviver com o Outro que as mulheres 'reclamonas' decidem suicidar-se. Não há lugar nesse mundo para a quem falta humildade. Uma das mulheres se mata, a outra decide assumir um papel masculino.

O extermínio das famílias de muitos personagens parece enfraquecê-los. Rick e sua família chegam a despertar até certo ressentimento por parecerem mais confiantes. Um novo filho os tornam ainda mais motivados. "O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda. Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida." *

Mas não é a promessa de vida que impera em "The Walking Dead". A morte é onipresente. É um horror e um convite. É comum os personagens depararem-se com suicidas. A personagem Andrea perde a irmã e só desiste de se matar quando encontra o zumbi de um suicida pendurado em uma árvore. Ali ela percebe que a morte não é o fim e pode ser o começo de um pesadelo ainda pior. O sofrimento do homem, que podia ficar ali eternamente pendurado, como em uma punição eterna, a faz pedir que ele seja destruído. A consciência moral, volta a conquistar subitamente, naquele mundo, sua relação intrínseca com o sentido da vida em si. Bem disse Franklin: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido." *

Atestando a qualidade do seriado (que espero manter-se nas próximas temporadas), uma outra cena deixou-me mesmerizado pela força poética. Em certo episódio, o grupo encontra uma igrejinha no meio do nada. Ao abrir-se as portas deparam-se com um grupo de zumbis sentados diante do Crucifixo. Que ironia! Os mortos, como que em eterna contemplação, fitam o Deus Vivo em forma de cadáver apregoado. Após matarem os zumbis, um dos membros do grupo debocha: "E aí, JC? Aceitando pedidos?" Os mortos fitam o Salvador, os vivos não. Os vivos de alguma forma também podem estar mortos. Estar vivo é uma questão de atitude, literal e simbolicamente. Logo após, a mãe da menina perdida faz uma oração diante da Cruz. Nunca o silêncio de Deus foi tão eloquente a nos lembrar dos versículos de Isaías, 55, 6: "Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto." Parece ser tarde. É doloroso imaginar que Deus possa ficar surdo aos apelos de uma mãe.

Os zumbis fascinam por serem um arquétipo de nossas próprias carcaças cada vez mais desalmadas e dominadas pelos instintos mais básicos. Nós somos os errantes. Os vivos e os mortos. Está claro que o que está em jogo em "The Walking Dead" são as almas dos protagonistas. O Mal, que certamente é responsável por tudo, já possui aqueles corpos. As almas pertencem a Deus. Mas é preciso preservá-las. É preciso sobreviver ao apocalipse zumbi sem se tornar um deles, simbólica e literalmente, um monstro de frieza e amoralidade.

"Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida." *

"The Walking Dead" parece ser pura logoterapia. Dramaturgia de primeira qualidade.


* Olavo de Carvalho, "A mensagem de Viktor Frankl", revista Bravo, novembro de 1997