Primeira montagem do grupo, o espetáculo "Fogo Cruel em Lua de Mel", com texto de Nazareno Tourinho, abriu a cena teatral deste ano na capital paraense. A Cia Fé Cênica comemora seis anos de atividades na cidade de São Paulo montando autores do estado do Pará, tendo já encenado peças de Saulo Sisnando e Carlos Correia Santos. Tive a honra de ser convidado para a nova estréia da peça em Belém, onde também compareceu, o ilustríssimo Nazareno Tourinho, que com 78 anos de idade ainda faz questão de assistir o que andam fazendo com os seus textos.
Sobre Nazareno, o site G1 resume:
"Nazareno Tourinho tem 78 anos, é jornalista e um dos dramaturgos mais atuantes na cena paraense. Integrante da Academia Paraense de Letras, publicou várias de suas obras e foi premiado em concursos nacionais e internacionais, como, o IV Concurso de Dramaturgia Latino-americano Andres Bello, realizado na Venezuela."
Para saber mais, a UFPA tem uma página com a sua biografia.
Do Nazareno tomei leitura das peças Lei é Lei e Está Acabado, Severa Romana, Fogo Cruel em Lua-de-Mel, Amor de Louco Nunca é Pouco, A Greve do Amor e Uma Caprichosa Manifestação de Espíritos. Infelizmente ainda não li a peça que dizem ter sido muito elogiada por Gerald Thomas, "Pai Antonio", e por incrível que pareça, também não li a mais famosa, "Nó de 4 pernas", que inclusive foi montada em 2012 por jovens atores e diretores da Escola de Teatro da UFPA.
O que tenho a dizer sobre a dramaturgia de Nazareno Tourinho são três impressões fortíssimas que sempre causaram imenso prazer a este que vos escreve: um texto ágil como uma partida de pingue-pongue, monólogos capazes de consagrar atores e a extrema sensibilidade na construção de personagens que começam sempre como arquétipos e terminam desviscerados em assustadora humanidade.
Sempre parece que Nazareno quer julgar as personagens, mas, no meio do caminho de sua escrita (que alcança momentos de um lirismo arrebatador) ele as vai escutando, acalentando, namorando e, finalmente, amando e perdoando. Tenho que confessar que acho Nazareno uma figura enigmática: é espírita, assumidamente comunista e, como espera-se dos artistas verdadeiros, com uma obra que ultrapassa todas essas preferências. Não é a toa que foi comparado com Ariano Suassuna, um mestre da dramaturgia - arrisco dizer - mundial, outro que não ligava para 'realismo socialista' ou coisa parecida. Bons tempos em que a esquerda contemplava o mundo e transformava isso em arte - nem sempre boa, nem sempre má, mas com sinceridade. Hoje tudo virou sinopse acadêmica para jantares inteligentes.
Adiante com o espetáculo.
"Fogo Cruel em Lua de Mel", segundo o G1:
"é situada na noite de núpcias de Gil e Elza, que se casaram após onze anos de namoro. O que poderia ser uma noite de amor acaba se tornando o momento em que as personagens discutem as diferenças de personalidade. Um incêndio no hotel e a possibilidade da morte fazem com que as personagens revejam os seus valores, o que muda o rumo de toda a peça. As personagens vivem momentos de grande contradição quando desconfiam que possam morrer em uma situação que é inusitada, mas que é possível."
Ela é psicóloga e cristã praticante, ele um poeta declaradamente ateu. A recém-casada prometeu a Santo Antonio o absurdo: que morreria em castidade se ela finalmente casasse com o noivo Gil. A revelação disso no leito nupcial, após todas as tentativas de 'acasalamento', deixa o marido de Elza furioso. Este começa a fazer chacota da fé da esposa e principalmente, do santo casamenteiro, também começando a beber e a tratá-la grosseiramente No entanto, Elza é inflexível ao ponto de dormir agarrada com o santo e Gil está prestes a anular o casamento. Eis que o incêndio tudo muda. Presos no edifício em chamas, concluem que não escaparão com vida e entram em pânico. Acontece o impensável. Gil, com medo de morrer, exige que a esposa, a qual julga plena da graça de Deus, reze para que um milagre aconteça. Elza, surpreendentemente, recusa o convite para rezar e passa a exigir que o marido se comporte como homem e a salve. Em pouco tempo, incêndio piorando, a situação inverte-se completamente: o poeta ateu confessa seus pecados e redescobre o mistério da existência; a psicóloga carola lamenta todos os prazeres que perdeu na vida e tenta seduzir o marido. Mas ele, Gil, não quer mais o corpo da mulher. Ambos queimam. Gil implorando misericórdia e Elza implorando por sexo. O fogo toma conta do cenário e se encerra a peça.
O texto do Nazareno é deliciosamente direto, sem enrolação nem pedantismo, um presente para os atores. E o ator Geraldo Machado parece ter percebido bem isso. O ator paulistano, apesar de apressar as falas no início, foi entregando-se ao jogo e atingiu o que se espera dos preciosos monólogos da peça: entrega total. Ao contrário, a atriz Viviane Bernard, teve uma estréia ruim, nervosa, facilitada (ou dificultada?) pela natureza mais contida da personagem Elza. Geraldo Machado queimava com beleza no ato final; Viviane perdeu a oportunidade de se deixar queimar e desvelar a todos a hipocrisia da personagem.
Esperava mais da direção do Claudio Marinho nesse espetáculo. Não entendi por que um texto tão gostoso sofre tanto desperdício em cena. A tendência do ator é 'metralhar' o texto e resolver a cena da forma mais confortável. Peças com casais trazem raras oportunidades para diretores trabalharem pequenos gestos, atos falhos, olhares discretos, contradições sentimentais, pudores. Não sei se por que era estréia depois de três anos, mas parece que a direção não voltou a deitar naquela cama com eles. Tinha-se pressa até de olhar pelas janelas. Na verdade, tinha-se pressa de tudo. Tanto que o espetáculo acabou e um casal de amigos ao meu lado - que estava se divertindo - disse, espantado: "Já?" A direção, no entanto, acerta na escolha de Sonia Lopes - milagreira da luz na cena teatral paraense - e nas soluções do cenário: simples, sem tirar o foco do texto.
O texto do Nazareno (e também o de Carlos Correia Santos, dramaturgo paraense que já critiquei aqui no blog) tem um dom incrível: mesmo que você pouco ou nada faça para dirigi-lo, ele funciona graças a sua estrutura impecável. As peças do Nazareno vão além: ensaiam perfeitamente uma síntese, uma antítese e uma tese que - milagrosamente - fica suspensa como nuvens sobre os ouvintes, eternizando-se na platéia. Essa dialética o Partidão não vigia por pura incapacidade de abstração. Graças a Deus. Nazareno, sim, merecia o nome de uma rua, uma bonita.
Faltou Fé Cênica. Da atriz no ator, de ambos na direção, da direção em Nazareno. Naquela cama todos têm que arder no final.