15 de janeiro de 2013

"Fogo Cruel em Lua de Mel" da Cia Fé Cênica



Primeira montagem do grupo, o espetáculo "Fogo Cruel em Lua de Mel", com texto de Nazareno Tourinho, abriu a cena teatral deste ano na capital paraense. A Cia Fé Cênica comemora seis anos de atividades na cidade de São Paulo montando autores do estado do Pará, tendo já encenado peças de Saulo Sisnando e Carlos Correia Santos. Tive a honra de ser convidado para a nova estréia da peça em Belém, onde também compareceu, o ilustríssimo Nazareno Tourinho, que com 78 anos de idade ainda faz questão de assistir o que andam fazendo com os seus textos.

Sobre Nazareno, o site G1 resume:

"Nazareno Tourinho tem 78 anos, é jornalista e um dos dramaturgos mais atuantes na cena paraense. Integrante da Academia Paraense de Letras, publicou várias de suas obras e foi premiado em concursos nacionais e internacionais, como, o IV Concurso de Dramaturgia Latino-americano Andres Bello, realizado na Venezuela."


Para saber mais, a UFPA tem uma página com a sua biografia.


Do Nazareno tomei leitura das peças Lei é Lei e Está Acabado, Severa Romana, Fogo Cruel em Lua-de-Mel, Amor de Louco Nunca é Pouco, A Greve do Amor e Uma Caprichosa Manifestação de Espíritos. Infelizmente ainda não li a peça que dizem ter sido muito elogiada por Gerald Thomas, "Pai Antonio", e por incrível que pareça, também não li a mais famosa, "Nó de 4 pernas", que inclusive foi montada em 2012 por jovens atores e diretores da Escola de Teatro da UFPA. 


O que tenho a dizer sobre a dramaturgia de Nazareno Tourinho são três impressões fortíssimas que sempre causaram imenso prazer a este que vos escreve: um texto ágil como uma partida de pingue-pongue, monólogos capazes de consagrar atores e a extrema sensibilidade na construção de personagens que começam sempre como arquétipos e terminam desviscerados em assustadora humanidade. 


Sempre parece que Nazareno quer julgar as personagens, mas, no meio do caminho de sua escrita (que alcança momentos de um lirismo arrebatador) ele as vai escutando, acalentando, namorando e, finalmente, amando e perdoando. Tenho que confessar que acho Nazareno uma figura enigmática: é espírita, assumidamente comunista e, como espera-se dos artistas verdadeiros, com uma obra que ultrapassa todas essas preferências. Não é a toa que foi comparado com Ariano Suassuna, um mestre da dramaturgia - arrisco dizer - mundial, outro que não ligava para 'realismo socialista' ou coisa parecida. Bons tempos em que a esquerda contemplava o mundo e transformava isso em arte - nem sempre boa, nem sempre má, mas com sinceridade. Hoje tudo virou sinopse acadêmica para jantares inteligentes. 


Adiante com o espetáculo.


"Fogo Cruel em Lua de Mel", segundo o G1: 


"é situada na noite de núpcias de Gil e Elza, que se casaram após onze anos de namoro.  O que poderia ser uma noite de amor acaba se tornando o momento em que as personagens discutem as diferenças de personalidade. Um incêndio no hotel e a possibilidade da morte fazem com que as personagens revejam os seus valores, o que muda o rumo de toda a peça. As personagens vivem momentos de grande contradição quando desconfiam que possam morrer em uma situação que é inusitada, mas que é possível."


Ela é psicóloga e cristã praticante, ele um poeta declaradamente ateu. A recém-casada prometeu a Santo Antonio o absurdo: que morreria em castidade se ela finalmente casasse com o noivo Gil. A revelação disso no leito nupcial, após todas as tentativas de 'acasalamento', deixa o marido de Elza furioso. Este começa a fazer chacota da fé da esposa e principalmente, do santo casamenteiro, também começando a beber e a tratá-la grosseiramente  No entanto, Elza é inflexível ao ponto de dormir agarrada com o santo e Gil está prestes a anular o casamento. Eis que o incêndio tudo muda. Presos no edifício em chamas, concluem que não escaparão com vida e entram em pânico. Acontece o impensável. Gil, com medo de morrer, exige que a esposa, a qual julga plena da graça de Deus, reze para que um milagre aconteça. Elza, surpreendentemente, recusa o convite para rezar e passa a exigir que o marido se comporte como homem e a salve. Em pouco tempo, incêndio piorando, a situação inverte-se completamente: o poeta ateu confessa seus pecados e redescobre o mistério da existência; a psicóloga carola lamenta todos os prazeres que perdeu na vida e tenta seduzir o marido. Mas ele, Gil, não quer mais o corpo da mulher. Ambos queimam. Gil implorando misericórdia e Elza implorando por sexo. O fogo toma conta do cenário e se encerra a peça.


O texto do Nazareno é deliciosamente direto, sem enrolação nem pedantismo, um presente para os atores. E o ator Geraldo Machado parece ter percebido bem isso. O ator paulistano, apesar de apressar as falas no início, foi entregando-se ao jogo e atingiu o que se espera dos preciosos monólogos da peça: entrega total. Ao contrário, a atriz Viviane Bernard, teve uma estréia ruim, nervosa, facilitada (ou dificultada?) pela natureza mais contida da personagem Elza. Geraldo Machado queimava com beleza no ato final; Viviane perdeu a oportunidade de se deixar queimar e desvelar a todos a hipocrisia da personagem.


Esperava mais da direção do Claudio Marinho nesse espetáculo. Não entendi por que um texto tão gostoso sofre tanto desperdício em cena. A tendência do ator é 'metralhar' o texto e resolver a cena da forma mais confortável. Peças com casais trazem raras oportunidades para diretores trabalharem pequenos gestos, atos falhos, olhares discretos, contradições sentimentais, pudores. Não sei se por que era estréia depois de três anos, mas parece que a direção não voltou a deitar naquela cama com eles. Tinha-se pressa até de olhar pelas janelas. Na verdade, tinha-se pressa de tudo. Tanto que o espetáculo acabou e um casal de amigos ao meu lado - que estava se divertindo - disse, espantado: "Já?" A direção, no entanto, acerta na escolha de Sonia Lopes - milagreira da luz na cena teatral paraense - e nas soluções do cenário: simples, sem tirar o foco do texto. 

O texto do Nazareno (e também o de Carlos Correia Santos, dramaturgo paraense que já critiquei aqui no blog) tem um dom incrível: mesmo que você pouco ou nada faça para dirigi-lo, ele funciona graças a sua estrutura impecável. As peças do Nazareno vão além: ensaiam perfeitamente uma síntese, uma antítese e uma tese que - milagrosamente - fica suspensa como nuvens sobre os ouvintes, eternizando-se na platéia. Essa dialética o Partidão não vigia por pura incapacidade de abstração. Graças a Deus. Nazareno, sim, merecia o nome de uma rua, uma bonita.


Faltou Fé Cênica. Da atriz no ator, de ambos na direção, da direção em Nazareno. Naquela cama todos têm que arder no final
.





















9 de janeiro de 2013

Po-e-ma

"O que tenho pra contá
É que o diabo nos faz pecá
pra nossa alma explorá
nossa culpa manipulá
a misericórdia negá
e assim nos instá
a ele procurá
de Deus se magoá
e assim devagá
triste desesperá
da lama se orgulhá
do amor duvidá
do ódio esperá
vingança contra Quem lá
nos trouxe para cá
e assim nos afastá
do nosso belo lá
que nas nuvens está
pra quem se perdoa
e pra quem perdoá."

Luiz Fernando Vaz

3 de janeiro de 2013

Sobre mortos-vivos e Vitor Frankl


Assisti recentemente as duas primeiras temporadas do famoso seriado americano "The Walking Dead" e posso afirmar que fiquei fascinado, não só pela produção impecável e pela qualidade extrema dos atores, mas principalmente pela qualidade dos roteiros. Fábio Argondizo, um amigo do Facebook, chamou a minha atenção para a semelhança dramática da série com a vivência precária e radical dos campos de concentração narrada pelo psiquiatra Vitor Frankl no seu livro "Em Busca do Sentido". De fato, o seriado - pelo menos nas duas temporadas - merece destaque por espremer seus protagonistas entre duas questões em meio a uma corrida frenética pela sobrevivência em um mundo apocalíptico: "Por que eu não quero morrer?" e "Por que eu deveria viver?"

Em "The Walking Dead" o mundo é repentinamente tomado por zumbis. Não há respostas sobre o que aconteceu: apenas cadáveres ambulantes em toda parte querendo devorar a todos. Não há tempo pra entender muita coisa. Todos estão o tempo inteiro correndo, seja fugindo dos mortos-vivos, procurando víveres ou evitando sucumbir ao desespero dos que ainda estão vivos. Para o desespero dos desarmamentistas, armas de fogo e balas tornam-se artigos de primeiríssima necessidade para evitar a voracidade dos zumbis ou o assédio de outros humanos igualmente desesperados. A civilização desabou: não há Estado, lei, mídia, nada; apenas destruição e morte. A ordem é sobreviver; ainda que não se saiba até quando nem para quê.

Apesar da violência gráfica perturbadora do seriado (sangue, massa encefálica e vísceras são café pequeno), é o drama humano que sobressalta na tela com uma crueza pouco vista. Todos os mesmos personagens poderiam estar em um campo de concentração: o homem que quer salvar a sua família, a mulher indefesa e incapaz de defender a si e aos outros, o idoso que teme tornar-se descartável, a jovem impetuosa que quer deixar de ser a eterna vítima, a criança que insiste em manter a inocência em meio ao caos, etc. O personagem central, o policial Rick, no episódio piloto, protagoniza a cena síntese do seriado quando observa um zumbi com metade do corpo destruído arrastando-se desesperadamente como em uma agonia eterna. O 'caubói' o observa calmamente, com compaixão, como se pensasse "Por que eu não quero matá-lo?" ou "Por que deveria deixá-lo viver nesse estado?", antes que, com pesar, desferisse um tiro na cabeça do errante infeliz. A cena e o personagem do caubói sintetizam bem o diferencial de Vitor Frankl para sobreviver ao absurdo. No comentário de Olavo de Carvalho à obra supracitada: "Frankl entrou no campo (de concentração) firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo."* A alusão ao caubói estilo xerife não é gratuita e dialoga com os grandes westerns. Mais uma vez, o comentário do filósofo brasileiro sobre Frankl, parece sintetizar o personagem: "Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação."* Rick nega a si o sabor da matança e da destruição irrefletida e tem na família e nos amigos a motivação para a sobrevivência e para a resistência moral. É claro que não vai ser fácil.

Shane, o amigo policial de Rick, é uma espécie de duplo do personagem central Rick. Crente de que o amigo estava morto, Shane toma para sua proteção a mulher e o filho do caubói, ganhando assim uma motivação para lutar. A volta do parceiro gera então uma rivalidade ao estilo girardiano com consequências trágicas. Os amigos não disputam apenas uma mulher, mas sim uma motivação vital para continuarem lutando naquele mundo absolutamente hostil e sem sentido. É o 'outro', expresso na mulher e na criança, que os mantém vivos, no lato sentido da palavra.

O fim da civilização no seriado derruba de uma vez por todas os paradigmas 'modernos'. Em outra cena simbólica, algumas mulheres do grupo de sobreviventes queixam-se de 'é preciso repensar a divisão das tarefas ali no acampamento'. A queixa é vã: em um mundo de sobrevivência atroz não há como abrir mão dos homens - naturalmente mais fortes e guerreiros - na defesa do grupo, as tarefas domesticas e menos perigosas acabam ficando mesmo com as mulheres. A cena demonstra bem como todos os ismos caem facilmente por terra em uma situação extrema: feminismos e 'gêneros' tornam-se irrelevantes e impraticáveis e não há lugar para o egoísmo ideológico. É imperiosa a necessidade de se reconhecer o Outro e a impossibilidade da auto-suficiência tão cara ao homem e a mulher de hoje. E é justamente por causa dessa incapacidade de conviver com o Outro que as mulheres 'reclamonas' decidem suicidar-se. Não há lugar nesse mundo para a quem falta humildade. Uma das mulheres se mata, a outra decide assumir um papel masculino.

O extermínio das famílias de muitos personagens parece enfraquecê-los. Rick e sua família chegam a despertar até certo ressentimento por parecerem mais confiantes. Um novo filho os tornam ainda mais motivados. "O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda. Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida." *

Mas não é a promessa de vida que impera em "The Walking Dead". A morte é onipresente. É um horror e um convite. É comum os personagens depararem-se com suicidas. A personagem Andrea perde a irmã e só desiste de se matar quando encontra o zumbi de um suicida pendurado em uma árvore. Ali ela percebe que a morte não é o fim e pode ser o começo de um pesadelo ainda pior. O sofrimento do homem, que podia ficar ali eternamente pendurado, como em uma punição eterna, a faz pedir que ele seja destruído. A consciência moral, volta a conquistar subitamente, naquele mundo, sua relação intrínseca com o sentido da vida em si. Bem disse Franklin: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido." *

Atestando a qualidade do seriado (que espero manter-se nas próximas temporadas), uma outra cena deixou-me mesmerizado pela força poética. Em certo episódio, o grupo encontra uma igrejinha no meio do nada. Ao abrir-se as portas deparam-se com um grupo de zumbis sentados diante do Crucifixo. Que ironia! Os mortos, como que em eterna contemplação, fitam o Deus Vivo em forma de cadáver apregoado. Após matarem os zumbis, um dos membros do grupo debocha: "E aí, JC? Aceitando pedidos?" Os mortos fitam o Salvador, os vivos não. Os vivos de alguma forma também podem estar mortos. Estar vivo é uma questão de atitude, literal e simbolicamente. Logo após, a mãe da menina perdida faz uma oração diante da Cruz. Nunca o silêncio de Deus foi tão eloquente a nos lembrar dos versículos de Isaías, 55, 6: "Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto." Parece ser tarde. É doloroso imaginar que Deus possa ficar surdo aos apelos de uma mãe.

Os zumbis fascinam por serem um arquétipo de nossas próprias carcaças cada vez mais desalmadas e dominadas pelos instintos mais básicos. Nós somos os errantes. Os vivos e os mortos. Está claro que o que está em jogo em "The Walking Dead" são as almas dos protagonistas. O Mal, que certamente é responsável por tudo, já possui aqueles corpos. As almas pertencem a Deus. Mas é preciso preservá-las. É preciso sobreviver ao apocalipse zumbi sem se tornar um deles, simbólica e literalmente, um monstro de frieza e amoralidade.

"Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida." *

"The Walking Dead" parece ser pura logoterapia. Dramaturgia de primeira qualidade.


* Olavo de Carvalho, "A mensagem de Viktor Frankl", revista Bravo, novembro de 1997