9 de março de 2013

As drogas e o suicídio da personalidade



Inspirado pelo depoimento emocionado e cortante da mulher do infeliz vocalista da banda Charlie Brown, o tal Chorão, escrevi essa postagem no perfil do meu Facebook. É o motivo principal pelo que eu não gosto de drogas. Perdi grandes amigos para o poder corruptivo dessa merda. Uma perda, para mim, pior que a da morte. Leiam:

"Drogas matam. Sim, matam. Mas isso não é o pior efeito da droga em nossa sociedade. O drogado que morre alivia-se a si próprio e os que estão ao seu redor tragicamente. A droga vai além. A droga piora o que há de pior em nós. Cada uma delas tem o seu pecado favorito: algumas promovem a luxúria, outras a gula, ou a ira, ou a preguiça. Mas todas sem exceção - depois que debilitam o livre-arbítrio, o discernimento mental e a saúde física das pessoas - promovem a avareza, a inveja e principalmente o orgulho - pecado demoníaco por excelência: o pecado da vaidade desmesurada, da tentação do maldito sob pretexto de pureza, da falsa superioridade existencial por desafiar a realidade ainda que ela seja a dos limites do próprio corpo. Para justificar o prazer da droga, o drogado começa a achar aceitável a relativização de tudo. Para sustentar o vício começa a achar relativa a necessidade de ser avarento com o que tem ou com o que pode obter para poder gastar altas somas com a sua 'viagem; passa a invejar os que obtém os mesmos bens necessários ao seu prazer caindo facilmente na tentação das ideologias utilitaristas; e, finalmente, chega à negação de toda falta de controle por parte de suas faculdades mentais e espirituais, agravando ainda mais a sua demência existencial em um arroubo de orgulho desmesurado imune a qualquer admoestação. Essa corrupção íntima afeta gravemente as relações dessas pessoas consigo próprias e com o mundo de forma tão incontrolável e avassaladora que nada mais resta a elas que não se agarrar a um solipsismo suicida que, com sorte, é aproveitado por algo ou alguém; mas que, na maioria das vezes, leva mesmo é à destruição total da personalidade. A droga pode levar a mortes bem mais prolongadas e dolorosas."

14 de fevereiro de 2013

Passos



Ó Nossa Senhora!
Tu que sentistes cada passo do Menino 
Tu que sentiu cada passo Dele no deserto
Tu que sentes ainda cada passo rumo ao Calvário
E que
Eternamente sentirás todos os passos do Mundo.
Responde para mim, madre dolorosa:
"Por que por mim tudo passa
E aquilo que bem passa
Pouco demora?"

15 de janeiro de 2013

"Fogo Cruel em Lua de Mel" da Cia Fé Cênica



Primeira montagem do grupo, o espetáculo "Fogo Cruel em Lua de Mel", com texto de Nazareno Tourinho, abriu a cena teatral deste ano na capital paraense. A Cia Fé Cênica comemora seis anos de atividades na cidade de São Paulo montando autores do estado do Pará, tendo já encenado peças de Saulo Sisnando e Carlos Correia Santos. Tive a honra de ser convidado para a nova estréia da peça em Belém, onde também compareceu, o ilustríssimo Nazareno Tourinho, que com 78 anos de idade ainda faz questão de assistir o que andam fazendo com os seus textos.

Sobre Nazareno, o site G1 resume:

"Nazareno Tourinho tem 78 anos, é jornalista e um dos dramaturgos mais atuantes na cena paraense. Integrante da Academia Paraense de Letras, publicou várias de suas obras e foi premiado em concursos nacionais e internacionais, como, o IV Concurso de Dramaturgia Latino-americano Andres Bello, realizado na Venezuela."


Para saber mais, a UFPA tem uma página com a sua biografia.


Do Nazareno tomei leitura das peças Lei é Lei e Está Acabado, Severa Romana, Fogo Cruel em Lua-de-Mel, Amor de Louco Nunca é Pouco, A Greve do Amor e Uma Caprichosa Manifestação de Espíritos. Infelizmente ainda não li a peça que dizem ter sido muito elogiada por Gerald Thomas, "Pai Antonio", e por incrível que pareça, também não li a mais famosa, "Nó de 4 pernas", que inclusive foi montada em 2012 por jovens atores e diretores da Escola de Teatro da UFPA. 


O que tenho a dizer sobre a dramaturgia de Nazareno Tourinho são três impressões fortíssimas que sempre causaram imenso prazer a este que vos escreve: um texto ágil como uma partida de pingue-pongue, monólogos capazes de consagrar atores e a extrema sensibilidade na construção de personagens que começam sempre como arquétipos e terminam desviscerados em assustadora humanidade. 


Sempre parece que Nazareno quer julgar as personagens, mas, no meio do caminho de sua escrita (que alcança momentos de um lirismo arrebatador) ele as vai escutando, acalentando, namorando e, finalmente, amando e perdoando. Tenho que confessar que acho Nazareno uma figura enigmática: é espírita, assumidamente comunista e, como espera-se dos artistas verdadeiros, com uma obra que ultrapassa todas essas preferências. Não é a toa que foi comparado com Ariano Suassuna, um mestre da dramaturgia - arrisco dizer - mundial, outro que não ligava para 'realismo socialista' ou coisa parecida. Bons tempos em que a esquerda contemplava o mundo e transformava isso em arte - nem sempre boa, nem sempre má, mas com sinceridade. Hoje tudo virou sinopse acadêmica para jantares inteligentes. 


Adiante com o espetáculo.


"Fogo Cruel em Lua de Mel", segundo o G1: 


"é situada na noite de núpcias de Gil e Elza, que se casaram após onze anos de namoro.  O que poderia ser uma noite de amor acaba se tornando o momento em que as personagens discutem as diferenças de personalidade. Um incêndio no hotel e a possibilidade da morte fazem com que as personagens revejam os seus valores, o que muda o rumo de toda a peça. As personagens vivem momentos de grande contradição quando desconfiam que possam morrer em uma situação que é inusitada, mas que é possível."


Ela é psicóloga e cristã praticante, ele um poeta declaradamente ateu. A recém-casada prometeu a Santo Antonio o absurdo: que morreria em castidade se ela finalmente casasse com o noivo Gil. A revelação disso no leito nupcial, após todas as tentativas de 'acasalamento', deixa o marido de Elza furioso. Este começa a fazer chacota da fé da esposa e principalmente, do santo casamenteiro, também começando a beber e a tratá-la grosseiramente  No entanto, Elza é inflexível ao ponto de dormir agarrada com o santo e Gil está prestes a anular o casamento. Eis que o incêndio tudo muda. Presos no edifício em chamas, concluem que não escaparão com vida e entram em pânico. Acontece o impensável. Gil, com medo de morrer, exige que a esposa, a qual julga plena da graça de Deus, reze para que um milagre aconteça. Elza, surpreendentemente, recusa o convite para rezar e passa a exigir que o marido se comporte como homem e a salve. Em pouco tempo, incêndio piorando, a situação inverte-se completamente: o poeta ateu confessa seus pecados e redescobre o mistério da existência; a psicóloga carola lamenta todos os prazeres que perdeu na vida e tenta seduzir o marido. Mas ele, Gil, não quer mais o corpo da mulher. Ambos queimam. Gil implorando misericórdia e Elza implorando por sexo. O fogo toma conta do cenário e se encerra a peça.


O texto do Nazareno é deliciosamente direto, sem enrolação nem pedantismo, um presente para os atores. E o ator Geraldo Machado parece ter percebido bem isso. O ator paulistano, apesar de apressar as falas no início, foi entregando-se ao jogo e atingiu o que se espera dos preciosos monólogos da peça: entrega total. Ao contrário, a atriz Viviane Bernard, teve uma estréia ruim, nervosa, facilitada (ou dificultada?) pela natureza mais contida da personagem Elza. Geraldo Machado queimava com beleza no ato final; Viviane perdeu a oportunidade de se deixar queimar e desvelar a todos a hipocrisia da personagem.


Esperava mais da direção do Claudio Marinho nesse espetáculo. Não entendi por que um texto tão gostoso sofre tanto desperdício em cena. A tendência do ator é 'metralhar' o texto e resolver a cena da forma mais confortável. Peças com casais trazem raras oportunidades para diretores trabalharem pequenos gestos, atos falhos, olhares discretos, contradições sentimentais, pudores. Não sei se por que era estréia depois de três anos, mas parece que a direção não voltou a deitar naquela cama com eles. Tinha-se pressa até de olhar pelas janelas. Na verdade, tinha-se pressa de tudo. Tanto que o espetáculo acabou e um casal de amigos ao meu lado - que estava se divertindo - disse, espantado: "Já?" A direção, no entanto, acerta na escolha de Sonia Lopes - milagreira da luz na cena teatral paraense - e nas soluções do cenário: simples, sem tirar o foco do texto. 

O texto do Nazareno (e também o de Carlos Correia Santos, dramaturgo paraense que já critiquei aqui no blog) tem um dom incrível: mesmo que você pouco ou nada faça para dirigi-lo, ele funciona graças a sua estrutura impecável. As peças do Nazareno vão além: ensaiam perfeitamente uma síntese, uma antítese e uma tese que - milagrosamente - fica suspensa como nuvens sobre os ouvintes, eternizando-se na platéia. Essa dialética o Partidão não vigia por pura incapacidade de abstração. Graças a Deus. Nazareno, sim, merecia o nome de uma rua, uma bonita.


Faltou Fé Cênica. Da atriz no ator, de ambos na direção, da direção em Nazareno. Naquela cama todos têm que arder no final
.





















9 de janeiro de 2013

Po-e-ma

"O que tenho pra contá
É que o diabo nos faz pecá
pra nossa alma explorá
nossa culpa manipulá
a misericórdia negá
e assim nos instá
a ele procurá
de Deus se magoá
e assim devagá
triste desesperá
da lama se orgulhá
do amor duvidá
do ódio esperá
vingança contra Quem lá
nos trouxe para cá
e assim nos afastá
do nosso belo lá
que nas nuvens está
pra quem se perdoa
e pra quem perdoá."

Luiz Fernando Vaz

3 de janeiro de 2013

Sobre mortos-vivos e Vitor Frankl


Assisti recentemente as duas primeiras temporadas do famoso seriado americano "The Walking Dead" e posso afirmar que fiquei fascinado, não só pela produção impecável e pela qualidade extrema dos atores, mas principalmente pela qualidade dos roteiros. Fábio Argondizo, um amigo do Facebook, chamou a minha atenção para a semelhança dramática da série com a vivência precária e radical dos campos de concentração narrada pelo psiquiatra Vitor Frankl no seu livro "Em Busca do Sentido". De fato, o seriado - pelo menos nas duas temporadas - merece destaque por espremer seus protagonistas entre duas questões em meio a uma corrida frenética pela sobrevivência em um mundo apocalíptico: "Por que eu não quero morrer?" e "Por que eu deveria viver?"

Em "The Walking Dead" o mundo é repentinamente tomado por zumbis. Não há respostas sobre o que aconteceu: apenas cadáveres ambulantes em toda parte querendo devorar a todos. Não há tempo pra entender muita coisa. Todos estão o tempo inteiro correndo, seja fugindo dos mortos-vivos, procurando víveres ou evitando sucumbir ao desespero dos que ainda estão vivos. Para o desespero dos desarmamentistas, armas de fogo e balas tornam-se artigos de primeiríssima necessidade para evitar a voracidade dos zumbis ou o assédio de outros humanos igualmente desesperados. A civilização desabou: não há Estado, lei, mídia, nada; apenas destruição e morte. A ordem é sobreviver; ainda que não se saiba até quando nem para quê.

Apesar da violência gráfica perturbadora do seriado (sangue, massa encefálica e vísceras são café pequeno), é o drama humano que sobressalta na tela com uma crueza pouco vista. Todos os mesmos personagens poderiam estar em um campo de concentração: o homem que quer salvar a sua família, a mulher indefesa e incapaz de defender a si e aos outros, o idoso que teme tornar-se descartável, a jovem impetuosa que quer deixar de ser a eterna vítima, a criança que insiste em manter a inocência em meio ao caos, etc. O personagem central, o policial Rick, no episódio piloto, protagoniza a cena síntese do seriado quando observa um zumbi com metade do corpo destruído arrastando-se desesperadamente como em uma agonia eterna. O 'caubói' o observa calmamente, com compaixão, como se pensasse "Por que eu não quero matá-lo?" ou "Por que deveria deixá-lo viver nesse estado?", antes que, com pesar, desferisse um tiro na cabeça do errante infeliz. A cena e o personagem do caubói sintetizam bem o diferencial de Vitor Frankl para sobreviver ao absurdo. No comentário de Olavo de Carvalho à obra supracitada: "Frankl entrou no campo (de concentração) firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo."* A alusão ao caubói estilo xerife não é gratuita e dialoga com os grandes westerns. Mais uma vez, o comentário do filósofo brasileiro sobre Frankl, parece sintetizar o personagem: "Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação."* Rick nega a si o sabor da matança e da destruição irrefletida e tem na família e nos amigos a motivação para a sobrevivência e para a resistência moral. É claro que não vai ser fácil.

Shane, o amigo policial de Rick, é uma espécie de duplo do personagem central Rick. Crente de que o amigo estava morto, Shane toma para sua proteção a mulher e o filho do caubói, ganhando assim uma motivação para lutar. A volta do parceiro gera então uma rivalidade ao estilo girardiano com consequências trágicas. Os amigos não disputam apenas uma mulher, mas sim uma motivação vital para continuarem lutando naquele mundo absolutamente hostil e sem sentido. É o 'outro', expresso na mulher e na criança, que os mantém vivos, no lato sentido da palavra.

O fim da civilização no seriado derruba de uma vez por todas os paradigmas 'modernos'. Em outra cena simbólica, algumas mulheres do grupo de sobreviventes queixam-se de 'é preciso repensar a divisão das tarefas ali no acampamento'. A queixa é vã: em um mundo de sobrevivência atroz não há como abrir mão dos homens - naturalmente mais fortes e guerreiros - na defesa do grupo, as tarefas domesticas e menos perigosas acabam ficando mesmo com as mulheres. A cena demonstra bem como todos os ismos caem facilmente por terra em uma situação extrema: feminismos e 'gêneros' tornam-se irrelevantes e impraticáveis e não há lugar para o egoísmo ideológico. É imperiosa a necessidade de se reconhecer o Outro e a impossibilidade da auto-suficiência tão cara ao homem e a mulher de hoje. E é justamente por causa dessa incapacidade de conviver com o Outro que as mulheres 'reclamonas' decidem suicidar-se. Não há lugar nesse mundo para a quem falta humildade. Uma das mulheres se mata, a outra decide assumir um papel masculino.

O extermínio das famílias de muitos personagens parece enfraquecê-los. Rick e sua família chegam a despertar até certo ressentimento por parecerem mais confiantes. Um novo filho os tornam ainda mais motivados. "O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda. Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida." *

Mas não é a promessa de vida que impera em "The Walking Dead". A morte é onipresente. É um horror e um convite. É comum os personagens depararem-se com suicidas. A personagem Andrea perde a irmã e só desiste de se matar quando encontra o zumbi de um suicida pendurado em uma árvore. Ali ela percebe que a morte não é o fim e pode ser o começo de um pesadelo ainda pior. O sofrimento do homem, que podia ficar ali eternamente pendurado, como em uma punição eterna, a faz pedir que ele seja destruído. A consciência moral, volta a conquistar subitamente, naquele mundo, sua relação intrínseca com o sentido da vida em si. Bem disse Franklin: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido." *

Atestando a qualidade do seriado (que espero manter-se nas próximas temporadas), uma outra cena deixou-me mesmerizado pela força poética. Em certo episódio, o grupo encontra uma igrejinha no meio do nada. Ao abrir-se as portas deparam-se com um grupo de zumbis sentados diante do Crucifixo. Que ironia! Os mortos, como que em eterna contemplação, fitam o Deus Vivo em forma de cadáver apregoado. Após matarem os zumbis, um dos membros do grupo debocha: "E aí, JC? Aceitando pedidos?" Os mortos fitam o Salvador, os vivos não. Os vivos de alguma forma também podem estar mortos. Estar vivo é uma questão de atitude, literal e simbolicamente. Logo após, a mãe da menina perdida faz uma oração diante da Cruz. Nunca o silêncio de Deus foi tão eloquente a nos lembrar dos versículos de Isaías, 55, 6: "Buscai ao Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto." Parece ser tarde. É doloroso imaginar que Deus possa ficar surdo aos apelos de uma mãe.

Os zumbis fascinam por serem um arquétipo de nossas próprias carcaças cada vez mais desalmadas e dominadas pelos instintos mais básicos. Nós somos os errantes. Os vivos e os mortos. Está claro que o que está em jogo em "The Walking Dead" são as almas dos protagonistas. O Mal, que certamente é responsável por tudo, já possui aqueles corpos. As almas pertencem a Deus. Mas é preciso preservá-las. É preciso sobreviver ao apocalipse zumbi sem se tornar um deles, simbólica e literalmente, um monstro de frieza e amoralidade.

"Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida." *

"The Walking Dead" parece ser pura logoterapia. Dramaturgia de primeira qualidade.


* Olavo de Carvalho, "A mensagem de Viktor Frankl", revista Bravo, novembro de 1997









11 de agosto de 2012

Do porquê que o Teatro me fez crer em Deus



Esta imagem das Olímpiadas que vi pela internet deixou-me especialmente emocionado. Postei no Facebook essa imagem com o comentário de que "Todo sonho alcançado vem do triunfo da Inocência". Logo recordei uma história pessoal.

Tenho que assumir que compartilho com o grande Nelson Rodrigues a opinião que ele tinha de si:

"Aos 18 anos eu era de uma ignorância enciclopédica"

Não que ela tenha diminuído, é claro, mas a minha superava a Barsa e a Enciclopédia Britânica juntas. Nelson já escrevia em jornais. O máximo que fiz quando adolescente foi escrever poemas mimados e servir de cobaia para experimentos de engenharia comportamental da MTV.

Foi exatamente aos 18 anos que comecei a fazer teatro. Comecei como um hobby, uma ocupação passageira para uma folga da universidade de Psicologia. E talvez pela oportunidade de ter tido bons mestres (além de ter um ego do tamanho do mundo), logo me deparei com duas dificuldades perturbadoras: nunca havia lido nada de importante na vida e tinha uma secura de imaginação. Meu ego juvenil - intoxicado de 'poder jovem' -, é claro, não suportava essa limitação. Eu estava pronto. Eu era "da geração que iria mudar o mundo". Desnecessário dizer que não acreditava em nada que não fosse eu mesmo; Deus então, nem passava pela minha cabeça. Eu era o adulto primordial, a besta metafísica que tinha no umbigo a consumação dos séculos.

O que acontecia era que simplesmente eu não tinha sobre o que falar em cena. Meu universo era tão somente a TV, as conversas entre amigos sobre a TV e, no máximo, livros que comentavam sobre algo que passava... na TV. Como eu não sabia ler nada que ultrapassasse uma Super Interessante, o simples contato com uma personagem de Nelson Rodrigues, ou uma estrofe de Shakespeare ou um verso misterioso de Eurípedes revelava-se uma tarefa humilhante.

Claro que tive alguma sorte. Meus professores de teatro (os grandes Ronald Bergman e Paulo Santana) jamais me estimularam a fazer o que chamam hoje de 'dramaturgia pessoal' (que, na minha opinião, não passa de uma muleta para atores semianalfabetos incapazes de entender uma ordem inversa, e que, assim usam um termo quase-acadêmico para disfarçar sua total incapacidade de se alçar ao 'sentimento do mundo') Não. Meus professores queriam que eu compartilhasse da mesma essência teatral a qual eles tiveram acesso e que arrisco a dizer que era e ainda é a mesma transmitida ininterruptamente, via mestre e discípulo, através destes 2500 anos: a verdade teatral que surge da brincadeira e da infância.

E essa postura essencial não era a que eu trazia para os meus ensaios. Eu queria - como na tal 'dramaturgia pessoal' - falar do "MEU mundo". Achava que todas as técnicas de palco serviam apenas para o mundo tivesse finalmente a oportunidade de conhecer Luiz Fernando Vaz.

Meu primeiro contato com a essência do teatro se deu ainda no meu primeiro espetáculo. E quis a bondade divina que fosse um Auto de Natal. Na peça, eu interpretava um pastor daqueles que estão entre os primeiros a ser visitados pela Estrela. Nas coxias, aguardando para entrar em cena, aconteceu o milagre que prendeu-me ao teatro. Fiquei tão mesmerizado quando ligaram os refletores que estanquei como uma mula.

Ali, enquanto era empurrado para o palco pelos outros atores, percebi instantaneamente toda a dimensão da minha ignorância naquele theatro mundi e neste palco outro em que vivemos: JAMAIS tinha visto uma peça em toda a minha vida. Jamais havia contemplado NADA na minha vida que não fosse eu próprio. A primeira vez que estava 'vendo' uma peça eu ESTAVA nela e - porca miséria! - estava ali esperando que o mundo contemplasse a mim. Errando a música e a coreografia, voltei a perceber aquilo que a criança percebe automaticamente quando chega a este mundo: que é necessário estender-lhe os braços não como quem oferece, mas como quem pede. Diante do público que me cravava os olhos, percebi que é preciso receber algo para ter o que oferecer. Mais tarde encontraria em Stanislavski essa certeza que para se doar é preciso primeiro se possuir. Finalmente, no final da peça, a atriz que representava a Virgem Maria levantou o Menino Jesus para que todos O adorassem. Então tive a certeza absoluta do que havia perdido: a Inocência.

Repentinamente, eu não era ninguém mais neste mundo e nem naquele outro que se abria por trás das cortinas. Como um bebê, estava totalmente desnudo e vulnerável. Mais uma vez. Foi então que percebi que jamais seria um ator se não me permitisse a brincar e ser como o pequenino que arregala os olhos perante às maravilhas do mundo.

Mas não; já tinha amarrado uma pedra de moinho no pescoço e me afogado nas profundezas do mar. Já tinha feito tropeçar o pequenino que eu era e agora ele jazia sob o peso do mar, sob o peso inteiro do mundo, incapaz de voltar à superfície - esquecido, abortado, morto.

O deus do teatro não é Dioniso, é o Menino Jesus. Dioniso podia ser como uma criança ao embriagar-se, mas o Menino Deus é a própria Inocência encarnada. A minha gratidão para com o Teatro não é somente para com quem me deu um ofício, um meio de sobreviver, mas principalmente para com quem - não me envergonho de dizer - me deu a Vida.

Quem sabe seja eterna...

Salve Maria Santíssima! Viva o Menino Jesus! Viva a Inocência Invencível!

24 de maio de 2012

Toda Nudez de sinceridade ainda será Castigada



"De repente, os idiotas descobriram que são em maior número." 

Foi com uma das infindáveis tiradas geniais de Nelson Rodrigues que iniciei minha pergunta naquela noite de terça feira, 22 de maio, para o professor Roberto Fadel. Tentei resumir o meu questionamento para o palestrante do Sarau da Feira, aquecimento cultural para a XVI edição da Feira Pan-Amazônica na capital paraense: "Como Nelson ia encarar, se vivo fosse, questões como cotas raciais, casamento gay e feminismo radical?" E completei: "Será que não existe uma certa exploração de Nelson Rodrigues por parte da esquerda cultural?"

A resposta que obtive resumiu-se a dizer que "hoje, mesmo com 100 anos, ele seria ainda mais conservador". Não há como discordar do professor Fadel nessa questão. De resto, o esforço de imaginação não me pareceu apropriado para a ocasião e ele parou por ali. Eu sei que não foi fácil responder.

Não é estranho que a esquerda cultural que domina esse país seja tão fascinada por um escritor e dramaturgo que, se vivo hoje em dia, seria uma pedra no sapato do politicamente correto? 

Muitos foram tão politicamente conservadores e 'reacionários' como Nelson Rodrigues e solenemente ignorados e esquecidos pela esquerda. Assim foi e permanece em relação a Paulo Francis, Roberto Campos, Gustavo Corção, Bruno Tolentino, entre outros. Mas existe uma explicação plausível: a obra de Nelson Rodrigues é perfeitamente instrumental para a causa do marxismo cultural na destruição da instituição da família e da moral cristã.

A própria definição de Nelson como 'anjo pornográfico" me parece ter sido assimilada em uma publicidade bem calculada para fazer do dramaturgo fluminense uma espécie de Foucault carioca, algo como uma Bruna Surfistinha de eras mais pudicas ou um prequel do Mr. Catra. 

O professor, que não me parecia mal-intencionado, mas sim surfar na crista da onda 'revisionista' da obra de Nelson, respondeu a várias perguntas de uma platéia excitada, como: "Quantas prostitutas Nelson Rodrigues se relacionava por noite?" e outras do mesmo top. Ao que respondia puxando sempre para o mesmo tom ao afirmar que Nelson era um escritor revolucionário a apontar a hipocrisia da família, do casamento e da educação cristã, etc. E quando um poeta local, a qual não recordo o nome agora, indagou se a obra de Nelson ecoava algo da tragédia grega, do padecimento do herói frente às leis divinas, outra vez respondeu que os personagens rodrigueanos não eram 'guerreiros' (sic). 

Em suma: a ordem da noite parecia ser pintar para uma platéia de estudantes de escola pública algo como Nelson ser em verdade um grande precursor dos bailes funks, das mulheres-frutas e do 'todo mundo é de todo mundo', esse ersatz nosso de cada dia. Até argumentos evolucionistas o professor usou para justificar a intensa vida de putaria que de alguma forma embasaria o espírito do grande dramaturgo boêmio...

Não é a primeira nem a última vez que assimilam a vida e a obra de outros para uma causa. Só no quesito 'o sexo como arma' temos o Dr. Freud redimensionado pela Escola de Frankfurt até parecer uma espécie de 'Marx da intimidade ocidental'. Até René Guenon, que estava mais preocupado com questões espirituais profundas teve sua crítica ao Ocidente assimilada na causa do marxismo cultural até se tornar uma espécie de Che Guevara hipster.


Mas para os revisionistas, talvez pouco importe a tônica maior da obra de Nelson Rodrigues, tão bem expressa na biografia escrita por Ruy Castro, como encontrada no excelente site do Grupo Tempo"a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz.  O personagem é vil, para que não o sejamos.  Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós.  A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo.  No "Crime e Castigo", Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado.  Ele matou por todos.  E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido.  Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros.  São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los."

Ora, não se enganem. A obra de Nelson Rodrigues, que completa 100 anos de nascimento nesse ano de 2012, só tem lugar no cânone 'progressista' da esquerda por servir bem como introdução a uma aula de 'educação' sexual. Por que não se interessam pelos relatos de proximidade da morte expressos em "Lições de Abismo" de Corção; pela obra poética colossal de Murilo Mendes, um homem que foi do ateísmo ao catolicismo mais místico; ou mesmo em escrever algo sério sobre a dramaturgia do paraense Carlos Correia Santos - aliás mediador do Sarau da Feira (que acaba de encenar um monólogo que praticamente encerra em texto teatral o que seria uma mentalidade revolucionária)? Ora, Porque não 'contribuem' em nada para a 'quebra de paradigmas sociais' no contexto de 'transformação social' das esquerdas.O que não deixa de ser uma relação conflituosa, cheia de ambiguidades - a elite prafentex não deixa de padecer de fascínio perante ao monstro reacionário que consegue ser mais safadinho do que uma Maria do Rosário. Daí é preciso 'democratizá-lo'. Ou seja, mistificá-lo até que o verdadeiro Nelson desapareça no entulho de estudos e montagens como apenas um velho machista. Machista - que inclusive era uma das definições ao meu ver simplistas do professor palestrante.

Nelson mostrava 'A vida como ela é', doa a quem doer. O sexo, a hipocrisia das famílias, dos casais e da sociedade carioca eram instrumentos para a pena de Nelson expressar a 'a miséria inconfessa de cada um de nós' e não um fim em si mesmo. Por isso, o 'anjo pornográfico' era conservador de direita. E certamente abominaria, tal como abominou também Pier Paolo Pasolini, essa banalização do pornográfico. Até os filmes pornôs antigos valorizavam a putaria em contextos de traição e de controvérsia amorosa. Hoje os atores só passam a mão na bunda da moça e já vão logo aos finalmentes. É isso o que querem fazer com Nelson Rodrigues. 

Pelo visto, no que depender da hegemonia educacional e cultural da esquerda que instrumentaliza os debates públicos, Toda Nudez (de sinceridade) ainda Será - e muito! - Castigada.



*



Imagem: "Toda Nudez Será Castigada" - montagem da Armazém Cia de Teatro

P. S - Já está mais do que na hora dos conservadores, direitistas, liberais e reacionários em geral comentarem a cena cultural brasileira. Ocupar os espaços do debate sobre as artes em geral. Falta crítica teatral, cinematográfica, de artes plásticas, musical do ponto de vista do legado intelectual do conservadorismo, por exemplo. E ainda tem bons artistas por aí que merecem ser resenhados. É preciso paciência e exercício da sensibilidade. Abraços.